27.10.07

Musa


Quem estava em casa nessa sexta-feira à noite teve a oportunidade de ver um requinte de delicadeza na tela da Globo: o especial "Por toda a minha vida" que homenageou Nara Leão. Após passar mais da metade da minha vida sonhando com o dia em que Nara receberia uma homenagem à altura de sua importância para a cultura brasileira, tive a alegria e a emoção de ver minha pequenina TV, que ganhei quando tinha 5 anos e que tantas vezes me transmitiu fragmentos de Nara - pedacinhos de luz e brilho que clarearam minha adolescência -, mostrá-la por inteiro, sem enganos ou informações confusas. Tiremos, pois, o chapéu pra emissora dos Marinho: numa tacada só, presentearam nossos olhos e ouvidos com imagens raras do Show Opinião, o áudio da primeira apresentação pública de Nara - a voz emocionante, trêmula e delicada, de uma menina de 17 anos-, e as entrevistas em que a sua simplicidade, coerência e honestidade para com o mundo e consigo mesma transpareceram de modo incrivelmente claro.

Sempre tive uma profunda admiração por Nara Leão. Desde criança, sua imagem inspirou em mim algo muito forte. Eu adorava ouvir Elis, mas Nara tinha os meus cabelos, um jeito moreno, sem laquês, brilhos e maquiagem de palco; era uma pessoa adulta, assim como eu era uma pessoa menina. Que graça: antes da voz, da história de vida, de tudo, veio essa indentificação, que nunca consegui criar com qualquer outro artista. Depois, inoculado em mim o vírus da curiosidade, escrafunchei e entendi que aquela terrenidade de Nara era fruto da consciência de que ser artista não é diferente de ser médica ou engenheira: como todo profissional, o músico deve ter responsabilidade, vocação, sensiblidade e competência. Pra que afetações e 1000 toalhas brancas no camarim?

Essa postura de Nara diante da carreira fez com que fosse qualificada como "anti-artista". Sempre ouço das pessoas que com ela conviveram a observação de que era absurdamente simples como mãe, dona de casa e profissional. Resistia ao assédio da mídia e das pessoas não por arrogância ou complexo de superioridade; muito pelo contrário, não se via como alguém "especial" ou "diferente" só pelo fato de ser cantora. Ironicamente, essa visão de Nara, somada à sua acuidade para descobrir novos talentos, dar voz aos esquecidos e fazer seu trabalho da forma mais bela e digna possível, tornaram-na um mito. Passados quase 20 anos de sua morte, há um séquito de fãs apaixonados, que criam e movimentam comunidades virtuais, compram seus álbuns e DVDs, dividem gostos e exultam sua personalidade. A mulher que fundou a MPB, bateu de frente com os militares e lutou bravamente pela vida por 10 anos está viva por todos os cantos. Como disse Ruy Castro no dia de sua morte, "Não chorem; ouçam seus discos."

Ainda estou muito tocada pelo especial de ontem, mas há algo de bem egoísta nisso. Maior do que a alegria e a emoção de presenciar toda a ode, sinto-me profundamente feliz por ter escolhido Nara pra minha vida. Se me identifico com ela, deve haver algo de muito bom em mim. Não tenho mais 14 anos de idade, meu violão há muito tempo repousa num canto da casa de Teresópolis, mas... quanto orgulho!