29.10.12

Escaras

Diga-se, de antemão, que aprendera bem cedo que só há dois tipos de gente nesse mundo: os que saem na chuva e os que fingem ser de açúcar. Quem lhe ensinou isso, com amor incondicional e obrigação de forjá-la para a vida, também deixou claro, todos os pingos nos is, qual o melhor caminho a tomar. Molhe-se, minha querida. Encharque-se. Não seja mulher de refugar.

Refugar, essa deformação dos ignóbeis.

Vida que seguiu, nunca deu dois passos pra trás. Nunca. Peito aberto, vísceras quase à mostra, tomou na cara bronca, vento, cornos, frio, e também um tanto de alegria, céu azul, desbragada paixão.

Até que, tarde estranha em que o sol entrava no quarto de esguelha, viu-se estropiada de tanta estragação, cansada da peleja, sentindo as escaras dolorosas nas entranhas. Não podendo mais, garrou-se ao hábito de medir o risco. Ah, o Diabo e suas muitas formas.

A princípio, mal podia respirar. Por onde andava seu rosto, seus intestinos, seu músculo propulsor? De pouco em pouco, abrandou o espírito. Aquilo devia ser a tal da maturidade, ou pelo menos era o que ouvira cantar uma cotovia, essa enganadora contumaz, Deus sabe onde.

Deu de alternar banhos de chuva grossa, daquelas que afogam o jeans e as roupas de baixo, com dias em que fazia o táxi parar à beira das escadas de mármore de seu velho prédio. Já nem era tão mocinha, veja bem. E, olhos lavados por trás de dioptrias cavalgantes, viu-se vivendo assombrada pelo medo dos outros, sublimou o desejo bobo em nome da camaradagem e do espírito de corpo, driblou o inconveniente deboche de demônios renitentes, encheu o peito de calor ao provocar o sorriso de um encantado a 35000 pés. Como tudo ainda era lindo, ainda que doesse menos!

Sim, as cores estavam lá; não havia modo de não vê-las. Era o caso de engoli-las para que, pegadas às mucosas, nunca mais lhe escapassem. E assim o fez, terapeuticamente. Se há risco de desbotar-se, tampouco sabe: só lhe restou viver.

A mulher amada


A cada metro de estrada vencido, caminhando a passos largos, maior é a certeza de que irá voltar. E, no dia da volta, ela estará à sua espera, no rosto aqueles olhos que são, ao mesmo tempo, candura e perdão. Sorrirá o mais branco dos sorrisos, pleno de calor e repreensão maternal, e o tomará nos braços como tomaria a uma criança que, assustada e temerosa de um carão, horas antes se perdera pelas ruas da cidade. Em seu colo, ele se aninhará e não quererá partir nunca mais. Molhará as vestes da mulher amada com lágrimas sentidas, que são todo o amor que guardou consigo enquanto dormia em camas alheias. Ela beijará seus olhos e passará os dedos por seus cabelos, e com a voz quente dirá que será sempre sua, como já era no primeiro dia, como jamais poderia deixar de ser. Sentindo o corpo estremecer, ele será tomado pela indizível sensação de estar de volta ao lar, e seu lar é aquela mulher cujo corpo é a mais sólida das construções: pés que se plantam na terra como vigas de aço, braços delgados e firmes de árvore antiga, o farto ventre que recende a tudo que é seu.