22.9.10

Ouvidor



É claro, meu bem, que tudo foi importante. O dia em que te conheci e nem cogitei te querer. A primeira vez que nossos olhos se entenderam. E aquela noite - Deus, tanto tempo faz! - que você se atreveu a pegar na minha mão. E tudo que veio depois. O beijo roubado e o consentido. A rusga, a confusão. Você, alquebrado. Eu, altiva, tive vontade de te pegar no colo - e peguei. Daí pro inevitável acontecer, foi questão de tempo.

E veio tudo aos borbotões, como uma hemorragia quente e viscosa. Por vezes te levava no lombo, mansa, boa, patológica. Concessões, separações, reencontros, tentativas, desejo, dor, excessos. A alma mastigada, amarfanhada como roupa torcida. Tudo importante, como já disse. Pausa, recomeço, o fim. Tudo importante, muito importante.

Mas nada, meu caro
Absolutamente nada
Nem um carinho
Um beijo
Ou a noite de amor mais abusada
Os entardeceres na Guanabara
Os amanheceres no Arpoador
Os euteamos - inúmeros
Nada, nada, nada

É comparável ao dia em que, vestida de fresco, desci a Rua do Carmo, entrei na Ouvidor e dobrei a esquina da Travessa de mãos dadas com outro homem.

19.9.10

Todo o Sentimento

Sexta-feira depois do almoço, lá no trabalho, naquela moleza de sol quente, trocávamos supresinhas pelo Bluetooth, até que Claudia me mandou uma gravação ao vivo de Todo Sentimento, interpretada por Maria Bethânia. Já tinha me esquecido da paixão que essa música sempre despertou em mim.


Todo o Sentimento
Chico Buarque
Chico Buarque e Cristovão Bastos

Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.

Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.

Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.

Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.

14.9.10

Àquele homem

Desculpe vir assim, altas horas, falar de coisa enterrada, passada. Eu não devia, e você me perdoe. Claro que eu sei que não tem volta, nem eu ia querer, creia-me. E tantas águas rolaram, tantos homens me amaram, tudo o mais. Mas tem dias que eu sonho, e vem uma dor, sabe?, dor estranha. Uma agulhada. Não, não é agulhada: é dor de cirurgia velha. Ah, você não sabe como é, óbvio. Eu explico. Incisões de bisturi cicatrizam, mas aquele lugar onde o aço afiado passou cortando nunca mais é o mesmo, e dói uma dor chata da porra quando muda o tempo. Pois é, é assim. E incomoda pacas quando eu sonho, assim como dói no inverno essa merda de corte do lado esquerdo do meu peito. Quer dizer: do lado esquerdo do meu seio esquerdo. Memória incômoda daquele nódulo, célula pequena e angustiada que cresceu, cresceu, cresceu, até que precisou ser extirpada. Ela se foi; você também. E eu que me vire com essa amargurazinha sazonal.