22.3.10

Gitana


Hoje o blog vira diário eletrônico comme il fault.
Amanhã será um dia daqueles decisivos. Em síntese, saberei o lugar onde morarei, pelo menos, pelos próximos 2 ou 3 anos.
Se estou preocupada, ansiosa, com tosse nervosa e numa agitação ímpar? Claro! Minha caixa de Olcadil que o diga. Mas, ainda assim, tem uma porçãozinha de mim que se mantém calma, centrada, orientada, fazendo planos para cada uma das opções, pensando na logística da coisa, nos novos hábitos, nas inúmeras despesas.
Não, mudanças físicas não me assustam: desde os 7 anos, quando saí do Rio pela primeira vez, já morei em um monte de cidades. Pela minha boca, já brotaram vários sotaques (crianças e a sua permeabilidade...) e saíram os vários nomes que alimentos e objetos têm em diferentes locais do Brasil (Aipim? Mandioca? Macaxeira? Tudo a mesma coisa!) Não sinto medo, nem um receiozinho sequer. Nada. Meu desejo é sempre me atirar - seja pro noroeste do Canadá ou pra uma cidadezinha acanhada no interior do Rio de Janeiro.
Se há algo que aprendi com tantas idas e vindas, é que sobrevive à distância o que deve sobreviver. Um amor pode viver luminoso, forte e inabalável a milhares de quilômetros, para depois se fragilizar e partir quando a pele de um roça a do outro. Uma família pode ser unida mesmo quando um está no Hemsfério Norte e o outro no Sul, mas não sobrevive à desconfiança e à ingratidão - seja ao vivo ou via satélite. Uma amizade começada na infância pode durar 20 anos, mesmo que por 18 deles todo o contato tenha sido por cartas, telefonemas e emails. É essa a missa que rezo quando meus amigos se veem na situação em que estou agora e - adivinhem? - vêm pedir conselhos a mim, uma espécie de expert na matéria. No início, ficam um pouco desconfiados, cabreiros, mas depois se convencem de que é assim mesmo.
Sem qualquer paúra, eu vou sair do Rio pela terceira vez em minha vida. Deixarei muito pouco pra trás: algumas sessões de teatro, metrô lotado, barulho de fuzil na madrugada, cinema, trânsito infernal, custo de vida exorbitante, shows bacaninhas, calor insuportável, alguns domingos em Ipanema. Da frivolidade, vão na minha mala cheia os sapatos, os vestidos, as dietas e os cosméticos; tudo muito novo, como novo e breve foi esse quase ano e meio que por aqui fiquei. O essencial - que é invisível aos olhos, já dizia a raposa - vai dentro de mim.

14.3.10

Realismo Fantástico


Por que tinha de se lembrar daquele verão? Em que ponto, num dia de praia e conversa fiada, cometeu o erro de falar de tantas coisas já vividas, passadas, cicatrizadas?
E não teve jeito: deste novelo, nunca se podia puxar uma ponta de linha sem que ele todo se desenrolasse. Chegou em casa, tirou o sal de mar do corpo e enterrou a cabeça em alfarrábios e fotos perdidas na sua bagunça digital. Pronto, já tinha caído na trama, emaranhada naquela lã maviosa que esquenta e, por vezes, sufoca.
Passados tantos invernos, aquele foi o único verão em que estiveram juntos. Agora, apesar de toda a vida que a separava daquele tempo, as cores das fotografias pareciam explodir de tanto vigor. Os brancos sorrisos, o dourado das areias, sua pele jambo, o castanho dos cabelos desgrenhados pelo vento e a lua amarelada boiando no céu de fim de tarde, azul como seu jeans e a camiseta que ele vestia. Além do corpo mais jovem e delgado, reconhecia em seus olhos uma ternura de amor de gente moça que, havia muito, a abandonara.
Naquela noite, se amaram como nunca antes. Quiseram-se com a ânsia e o desejo de quem há muito esperava por aquele reencontro de corpos que pareciam feitos sob medida um para o outro. Em seu íntimo, tinham consciência de que o fim estava próximo; as marés tropicais iam levá-los definitivamente para costas distantes. Contudo, não poderiam deixar de viver o que restava até o fim.
Sofreu a dor de uma morte quando tudo terminou. Refeita, teve outros encontros e um amor novo em folha. Aquele misto de apreensão e alegria, aquela paixão tão forte e, ao mesmo tempo, tão frágil, porém, não viveria nunca mais. E, quando olhava as antigas fotos, sentia cada vez menos saudades dele do que de si mesma.

13.3.10

A Confusão de Gêneros


Estranhe quem quiser estranhar, mas o fato é que eu não tenho mais televisão. Abolir esse eletrodoméstico não foi um ato de protesto contra o mundo capitalista ocidental ou coisa que o valha. A verdade é que o aparelho pifou, eu tive preguiça de consertá-lo ou comprar um novo, os meses foram se passando... e, um belo dia, já não fazia mais a menor falta. Minha relação com a TV sempre foi assim: tendo, eu assisto; não tendo, passo muito bem, obrigada.
Se uma vida sem televisão eu tiro de letra, o mesmo não posso dizer da internet, e como as mídias estão aí, misturadas, é por blogs, sites de notícias e tweets que eu fico sabendo o que rola neste Big Brother Brasil 10. A versão tupiniquim do reality show, até onde sei, é a mais prolífica do mundo - gostamos mesmo de bisbilhotar a vida alheia pelo buraco da fechadura, ou pela grande e absoluta janela de uma TV ligada na sala de estar. Ao que parece, cada edição tem lá suas polêmicas, e a bola da vez são os conflitos de sexualidade. O grande, forte e rústico lutador seria o ápice do contraponto heterossexual aos “coloridos” homossexuais.
Pois bem: acho que não é o caso de discutir as opiniões e (im)posturas do tal lutador; suas concepções pessoais são o oposto do que penso, vivo e acredito e, creio eu, os meus amigos que por aqui passam certamente partilham de minha opinião. O que me choca, na verdade, não é o Brasil tacanha que elegeu o rapaz como porta-voz, mas sim o modo como a opinião pública e os próprios participantes reagem à confusão de gêneros que veio à tona.
Tudo começou com a moça que disse ao mocinho com quem “ficava” que o achava “com jeito de gay”. Depois, a menina lésbica flerta com a tal moça e o jovem rapazinho afeminado (que alma leve e livre esse menino tem!) entra em jogo romântico com uma bela loirinha, alguns anos mais velha que ele. Por último, descobre-se o ensaio fotográfico de um dos másculos participantes para uma revista gay.
Uau. Será que estávamos preparados pra isso? Parece que não. A cada um desses acontecimentos, seguiram-se lágrimas, mágoa e centenas de chacotas no mundo virtual. As “piadas” vão desde um grosseiro “esses gays sabem cozinhar, mas não sabem comer” (como se o vaticinador conhecesse de cor e salteado a alcova alheia) até um suposto “bigode” da moça homossexual. É tanto clichê, tanto lugar-comum, que chega a ser risível.
Que desperdício de oportunidade! Nesta edição do BBB, nos é dada a chance de entender algo que não é de hoje está plantando à frente de nossos narizes: somos todos seres humanos, passíveis de amar e desamar qualquer um a qualquer tempo. Além disso, e ao contrário do que muitos acreditam, essa variedade de gêneros, essa oscilação de desejos e vontades não é um exotismo. Gente comum também é assim! A necessidade de ostentar rótulos é o que leva as pessoas a se guardarem - e, principalmente, a guardarem os outros - em caixinhas estanques. Homens gays não podem sentir atração por mulheres; se isso acontece, ou estão “confusos” ou são garanhões em pele de cordeiro. Mulheres hetero que se aproximam romanticamente de gays o fazem atraídas pelo “desafio” de “torná-los homens” ou estão sendo “enganadas” por alguém que quer “brincar” com seus sentimentos. Homens heteros não podem dançar sensualmente; se isso acontece, é claro que são gays. Lésbicas não podem tentar seduzir não-lésbicas, pois isso seria uma “falta de respeito”. Homem que é homem não faz foto pra revista de viado. Meu Deus, que chatice!
Quando vejo tudo isso acontecendo num zum zum zum vicioso, sem que nada de bom brote e sirva de legado, sinto uma imensa frustração. Acho que já poderíamos ter passado deste ponto de inflexão há tempos. De qualquer forma, o fato da discussão estar na rua, up to date, me dá uma certa esperança de que, um dia, os diversos tons da sexualidade humana sejam vistos por nossa sociedade como nuances naturais de uma mesma cor. Façamos figas.

* A foto é do excelente filme La Confusion des Genres, dirigido por Ilan Duran Cohen, que vi no Festival do Rio há uns 10 anos. O tema, claro, é o mesmo deste post. Aprovo e indico!

6.3.10

Morrer de Amor


A doutora não conseguia entender muito bem o que acontecera. A história, a princípio óbvia, que a (im)paciente lhe contava, a partir de certo ponto passara a não fazer o menor sentido. Escabriada, pediu novos exames. O resultado mostrava que, pelo menos agora, a mocetona que se postava ansiosa à sua frente estava razoavelmente sã. Com o tratamento que lhe contara ter feito (inadequado!) e todo o sofrimento de cirurgias mal-sucedidas, dores e lágrimas que lhe narrara, nada casava com nada.
Rugas de dúvida pululando na testa, ela marcou nova consulta. Queria comparar os exames atuais com aqueles outros, os antigos, do tempo em que todo o mal sucedera. Chegou o dia e lá estavam os dois diagnósticos, totalmente incompatíveis: um, alguns anos mais velho, sofrido, dorido, vermelho e triste, e o outro, recente, pintadinho de fresco, leve, impetuoso e levianamente saudável.
Mais confusa ainda a mulher de branco ficou. Não receitou remédios (devido às circunstâncias, desnecessários eram), contudo pediu um moderníssimo e ultraespecífico diagnóstico sanguíneo para dali a três meses. Ele irá ser o inceticida para a pulga que teima em viver atrás de sua orelha: afinal, essa menina tem ou não tem a tal doença?
"Não tenho" - pensou a moça do outro lado da mesa. Vaidosa, teimara por anos em não admitir a verdade que ela - e só ela - conhecia. Agora que estava prestes a ser desmascarada, tudo parecia tão claro que sabia não ter mais o direito de se esconder atrás de laudos e sintomas. O mal que lhe acometera - ah, e como sofreu! - fora mesmo de amor. Naquela feita, ele fora em sua vida um daqueles males duros, crônicos, que consomem carne e espírito ao longos dos anos, até que não sobre quase nada além de um corpo esgazeado, fatigado de dor e tristeza. Dessa moléstia, por pouco não pereceu. Se seu sofrimento não devia ser motivo de vergonha, tampouco de orgulho, que servisse, ao menos, de lição.

(E creiam - serviu.)