14.3.11

Como devia ser

- Não se deve casar com cafajestes, meu querido. Mais vinho?

E Antônio, desconcertado, olhou para a taça, tentando disfarçar o quanto o surpreendia tamanha franqueza. O tempo faz dessas coisas, ponderou. A Dora que agora lhe servia era experimentada, amparada por alguns amores, casamentos desfeitos, filhos crescidos. Aquela ironiazinha, ele sabia, estava lá desde o princípio, mas a idade deu-lhe contornos mais definidos. Incrivelmente rasos, como contrapeso, permaneciam os sulcos da face daquela mulher, ainda tão bela, ainda tão a mesma Dora de antanho, senhora daquela sala e dele próprio. Cafajeste é a vida, pensava. Sempre fora mais vaidoso e, agora, aparentava ter muito mais idade do que ela. Como quem vendera a alma a Lúcifer, Dora era sábia por dentro, bela e jovem por fora. Antônio, desgraçadamente, envelhecera de modo galopante, enquanto no âmago permanecera o menino de outros tempos - aqueles tempos.

- Você tem razão.

O que mais poderia dizer? Sabia o quanto errara, e que aquela palavra medonha, habitualmente dita aos gritos - cafajeste! - saía da boca daquela mulher de modo quase doce, sem mágoa ou rancor, mas com o potencial destrutivo de uma bomba de hidrogênio. É isso que eu sempre fui, mas quem mais, senão Dora, poderia lançar uma verdade tão contundente sobre mim?

- Mas eu te amei, Antônio. Melhor dizendo, ainda amo. Sempre vou te amar, e não há nenhuma novidade nisso. Desamar seria uma incoerência, um desrespeito a mim mesma, uma autoflagelação muito mais dolorosa do que seguir te amando. Mas amor não toma espaço - substantivo abstrato, lembra, querido? E eu amei de novo algumas vezes, a ponto de querer casar, fazer filhos, dividir contas. E você continuava lá, Antônio. Sempre cuidei pra que esse amor, o primeiro, o original, não entrasse porta afora nos outros amores. Cada um tem de ser único.

Aquelas palavras entraram nos ouvidos de Antônio como brasa. Dora sabia, como ninguém, levá-lo a nocaute. Enquanto ele passara os últimos vinte anos se entregando a devaneios de paixões furtivas e cafajestagens constrangedoras, ela, de fato, vivera. Seus relacionamentos, esparsos e duradouros, tiveram a solidez de uma rocha e se desfizeram no ar por seus próprios sortilégios. As lembranças do tempo idílico da juventude foram a única verdade de Antônio; para Dora, elas recendiam a poesia.

Calaram-se. O silêncio, úmido, quente e pesado, prolongou-se por muito tempo, até que a noite caiu sobre aquele velho sobrado. Lá fora, o frio e o vento cortavam as ruas, fazendo doer os ossos dos que se arriscavam a ganhar a calçada. Cá dentro, Antônio e Dora eram os mesmos de sempre.