27.4.09

Além de Paris, em abril


Como sabe quem me conhece mais de perto, vivi no Rio até os 7 anos, quando me mudei para só voltar a morar aqui quando cheguei à universidade. Durante a longa ausência, guardava pela cidade um misto de carinho e medo. Nas minhas primeiras férias de meio de ano desde a mudança pra Maceió, arrombaram o carro do meu tio na Tijuca e levaram toda a minha bagagem. Para quem morava num lugar conhecido como “Paraíso das Águas”, minha reação foi típica: quis pegar o primeiro avião e voltar pra Praia da Jatiúca. Desfaçatez do destino, essa semana a capital alagoana foi cenário de um crime semelhante ao que vitimou fatalmente o menino João Hélio no subúrbio carioca. Vinte anos, meus caros, não são vinte dias.
Quando finalmente tornei a casa, precisei redescobrir o Rio. Queria sentir a cidade de dentro pra fora, e não de fora pra dentro. O idílio dos exilados não é bom conselheiro; vela a visão tanto quanto o preconceito dos xenófobos. E foi enredada pela liberdade da vida universitária que vivi meu novo-primeiro outono carioca, um outono assaz atípico, cheio de nuvens no céu, novos amigos e longas caminhadas entre os campi da UFF. Se houve uma nesga de céu azul em 1999, não vi.
Dez outonos depois, já tenho minha história particular da estação em que o Rio se torna uma cidade ainda mais bela do que já é o ano inteiro. O outono carioca, forasteiros, é algo. Ainda hoje, a sua chegada é quase sempre surpreendente pra mim. Após mais uma madrugada abafada em meio aos temporais assombrosos de março, o dia amanhece lindo e civilizadamente fresco. Você se dá conta de que pode tomar banho e se vestir para ir trabalhar com o ar condicionado desligado, o que é um luxo para quem acaba de sair do verão austral. O clima agradável e a irradiação solar suave permitem que se escolha o figurino que quiser, e aquele vestido de laise amarela pula da gaveta para as suas mãos. Os cabelos das mulheres podem ficar soltos (o suor não vai escorrer pescoço abaixo) e os homens parecem sensivelmente mais belos e leves no Centro nervoso da cidade: envergar um terno, com essa brisa, é outra história. Até o secular mau cheiro da Rua da Quitanda dá uma colher de chá aos nossos narizes.
Em meio a tanta beleza, o outono carioca deve ser uma época propícia ao amor. Cantou o gorducho Ed Motta, por volta de 2001: “Há um lugar para ser feliz/ Além de abril em Paris/ Outono no Rio”. Sobre a primavera parisiense, não tenho opinião a emitir - conheci a cidade num inverno de ventos cortantes que me causaram um baita crise de sinusite - mas esses três versos sempre provocaram em mim uma extrema simpatia. Meus amores de primavera foram paixões de inverno que, um dia, nasceram como despretensiosas inquietações de outono. Tempo de semeadura, nossa estação-vedete.
Neste momento, cai uma chuvinha lá fora. Apesar disso, tenho certeza de que amanhã de manhã, quando eu dobrar a esquina da praia, um pano de fundo incrivelmente azul estará emoldurando o Pão de Açúcar. Não há dia que possa começar mal, quando se vive numa cidade em feitio de espetáculo...

13.4.09

Brilho Eterno


Hoje vi na TV que cientistas descobriram um dos buracos negros da psique humana. Sim: é possível apagar memórias do nosso cérebro através de drogas, estímulos ou algo do gênero. Aquele namorado complicado, os anos de bullying no colégio, o chefe que te assediou moralmente... tudo deletado pra sempre do seu HD, sem deixar vestígios. O desagradável vício de fumar ou beber? Nunca mais. Adeus, lembranças amargas e hábitos nefastos.
Curioso é que essa notícia me pegou num dia especialmente nostálgico. Na casa do meus pais para o feriado da Páscoa, reencontrei numa bolsa de viagem embolorada as fotos de toda a minha vida - ou pelo menos de uma parte considerável dela. Flavia bebê de cabelos clarinhos com vovô e vovó; Flavia no apartamento de Laranjeiras aprendendo a dançar com o Dindo; Flavia banguela na festa de fim de ano da escola; Flavia com os primos brincando no chão da casa da tia-avó; Flavia com papai e mamãe na Cidade da Criança... E com os amigos em Maceió, em Teresópolis, no Rio, em todo o canto. Fato inconteste é que quase todas essas lembranças são muito felizes e luminosas, contudo salpicadas de tristezas que, lá e cá, tornam a vida agridoce - requinte de paladar que, cá pra nós, diz muito mais à minha língua do que o que é excessivamente açucarado.
Evidente que há coisas pelas quais eu preferia não ter passado. Já segurei barras pesadas demais pros meus 28 anos... fatos terríveis, dolorosos ou difíceis mas que, ao fim e ao cabo, fazem parte da minha história de uma forma indissociável. Fico imaginando se toda essa tecnologia da neurociência estivesse ao meu alcance amanhã de manhã quando eu acordasse. Algo como um vendedor no melhor estilo “Avon chama” batendo à porta do meu apartamento, portando uma engenhoca capaz de apagar lembranças ruins por preços módicos. A senhora escolhe, eu apago. E aí, como escolher? Aliás... devo escolher? O que sobraria de mim, depois de eliminar as experiências negativas?
Apesar dos tropeções (meus e dos outros) que bagunçaram meu coreto tantas vezes, acho que ser quem eu sou ainda me dá um profundo prazer. Sabe aquele verso do Caetano, “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”? Pois é... sou tão arraigada às minhas dores e delícias que jamais saberia viver sem elas. Há os que chamam isso de autoestima elevada. Melhor assim.