28.1.10

De obsessão em obsessão

O título acima foi tomado de assalto de um texto que li num livro didático quando ainda era bem criança. Ele falava sobre a obsessão que ligava o narrador-personagem à palavra “obsessão”. Toda vez que ia escrevê-la, ele consultava o dicionário para conferir se estava empregando a grafia correta. Quando precisava usá-la assim, no seco, sem ter como confirmar (ah, aquelas trevas pré-internet...), simplesmente pirava. E, a partir daí, ele ia falando sobre pequenas outras obsessões suas. Eu devia ter uns sete ou oito anos, e adorei o texto a ponto de relê-lo um punhado de vezes. Identificação total.

E por que me lembrei disso? Porque hoje fui dar com os costados num consultório psiquiátrico, coisa que só acontecera uma única vez na minha vida: aquela esofagite erosiva pós-defesa-do-mestrado-durante-desemprego-e-pré-primeira-incursão-no-velho-mundo começava na cabeça e tinha que terminar por lá. Mas hoje a visita tinha outra razão, bem menos dolorosa. Precisava de um laudo de sanidade mental para fins meramente profissionais. Como não conhecia o médico, fiquei pensando em como seria... e posso dizer sem pestanejar que a realidade correspondeu aos mais estranhos delírios de contista - aqueles que vinha tendo na longa viagem de taxi entre o Maracanã e Copacabana.

O médico, figura bonachona e estrábica, começa a consulta atribuindo uma imensa importância àquele bendito atestado. Ok, não discordo, é importante mesmo, mas tanto a ponto de precisar ser complementado por um eletroencefalograma? Ta, ele é o médico e eu não sei de nada. Sou informada de que, se houver alteração no meu eletro, estou re-pro-va-da. Assimilo bem... é a vida. Depois, me pergunta quanto eu ganho. Respondo sem resistir: servidor público tem isonomia mesmo, meus rendimentos são um livro aberto. Ele diz que a pergunta faz parte do “teste”, e se eu questionasse a razão dele querer saber, demonstraria paranóia. Estaria re-pro-va-da.

Pausa dramática.

Neste momento, eu poderia escolher entre morrer de medo daquele homem ou achar toda a consulta meio boba, meio chata. Como há mais um monte de psiquiatras no livro do meu plano de saúde prontos a me considerarem uma pessoa “normal”, resolvi que seria só educada e honesta. Se ele me diagnosticasse como louca, buscaria uma segunda opinião.

E continuam as perguntas. Em algum momento eu cito o Itamaraty, ele fala em “viados” - segunda menção do gênero, após a androginia do Caetano Veloso, que “ficou melhor depois que virou homem”. Eu me sinto pessoalmente insultada e julgo muito, muito mesmo, essa chulice machista. Depois de um cerca-lourenço que me deixou tonta - “Pra psiquiatria ser homossexual não é problema, o problema é não lidar bem com a própria homossexualidade”, blábláblá - pergunta de supetão qual é a minha orientação sexual. Eu digo que sou heterossexual. Fico feliz pelo fato de sentir atração exclusivamente por homens; fosse eu gostar só ou também de mulheres e aquela lenga-lenga duraria mais uns 20 minutos.

Enveredando por caminhos que muito longe passavam do que imaginava de uma consulta como essa, chegamos ao fim. Nenhuma pergunta sobre eventos de transtorno psiquiátrico em minha vida, sintomas que possa ter tido ou medicamentos que tenha usado. No exame clínico, fui a-pro-va-da. O laudo final vem depois do eletro, no qual ainda posso ser re-pro-va-da.

Saí de lá com a palavra engodo soando nos tímpanos. Quanta tolice! Mal sabe ele que, embora eu tenha assentido com a cabeça à sua grosseria, achava um barato muito charmoso aquela fase andrógina do Caetano. Vivendo imerso na prepotência de quem não permite ao outro concluir frases, também não vai saber nunca que um sorriso polido pode esconder mil críticas. E, na obsessão por saber se sou paranóica, lésbica ou se consigo cumprir ordens, não conseguiu vislumbrar meu real defeitinho: a obsessão por beleza, simetria e perfeição. Nesse teste, ele não passou.

Um comentário:

Enderson Rafael disse...

Minha amiga é um gêniod a escrita! Que sorte eu tenho!