27.7.06

Réquiem para um amor

Sempre se sentira encantada pelos olhos dele. Eram miúdos, muito escuros, de brilho infantil. Olhos curiosos de quem muito queria ver; olhos de quem tencionava, a cada encontro, assoalhar por eles a alma. Alma... a alma que, talvez por inocência, ele imaginava ser descortinada pelos olhos dela.

Os olhos dela. Duas amêndoas bem feitas, matiz de mel silvestre. Desconcertantes. Hábeis em extrair verdades, e por vezes fugidios, distantes. Diziam do outro, mas quase tudo escamoteavam de si.

E foram lado a lado aqueles pares de olhos, anos a fio, entrando e saindo por vielas escuras, sorvendo manhãs nubladas, vendo amanheceres azuis tomados em empréstimo e pores-do-sol que sim, eram seus. Se sozinhos nada viam, juntos eram fanais.

Tanto aprenderam de amor, tanto se desencontraram, e ainda continuavam olhos dos olhos. Girava mundo, tanto se via, contudo eram quatro, eram dois, eram um só. Talvez assim fosse até a eternidade.

Mas a vida tem lá seus bruxedos. Num dia tolo, bestialmente ordinário, por alguns instantes detiveram-se num olhar, como muitas vezes fizeram antes. Algo diferente aconteceu, causando estremecimento. Não havia mais laivo de mistério – tudo estava posto. Os olhos dele nem eram tão infantis assim, pensou ela. E os olhos dela, agora ele via, escondiam muito pouco. Finalmente se enxergaram.

Tempos depois – meses, anos, não importa – ia ela pela rua, quando o viu sentado num banco de praça. Tão bem passara desde o desfecho, que sentia seu orgulho firmemente a salvo. Podia ser curiosa. Parou à sua frente e o olhou nos olhos. Um segundo. Dois segundos. Três segundos. Quatro segundos. A crença virou certeza: estavam vazios um do outro. Antes que ele pudesse falar, sorriu sem amargura, deu as costas e seguiu o caminho que era seu.

3 comentários:

Anônimo disse...

Não há o que possa ser comentado à altura. Mantenho um silêncio de admiração.

Bruno

Anônimo disse...

É engraçado como uma história tão complexa pode ser descrita em tão poucos parágrafos... Essa simplicidade do Depois sabe ser, irritante e es-can-da-lo-sa-men-te, genial.

Belo texto!

Anônimo disse...

Pô, Flavia, eu achava que eu escrevia bem, mas vc me humilha a cada post!!!! hahahahahahaha Um beijo enorme do seu fã e amigo! Enderson