18.9.06

Olhos de gueixa

Eu tinha 14 anos quando estava na festa de aniversário de um amigo e o avô dele, muito docemente, me lançou um olhar curioso e disse: “Você tem olhos de gueixa.” Não me esqueço daquela cena. Na época, muito menina, não consegui entender o que ele quis dizer com aquilo. Atribuí o comentário aos meus olhinhos amendoados, e só.

Lugar comum dizer que gueixas são mulheres especiais. Doces e dedicadas, vivem para dar atenção aos homens, enfeitando os salões de chá com sua graça meticulosamente conquistada, tocando instrumentos, apresentando-se em espetáculos de dança e conversando sobre assuntos agradáveis. Dizer que sua atividade é um trabalho seria pouquíssimo justo. Ser gueixa, eu penso, é uma espécie de sacerdócio. Assim como os monges e as freiras, essas mulheres abdicam do casamento e da família nos moldes tradicionais para dedicarem-se exclusivamente ao cultivo da beleza, das artes e da delicadeza, que atraem as atenções do universo masculino.

Corriqueiramente, nós, do suposto alto da “civilização ocidental”, lançamos sobre as gueixas o olhar semelhante ao que dedicamos, em nossas esquinas, às prostitutas. Ledo engano: falamos de dois universos completamente diferentes. As relações de uma gueixa com seus clientes, na maioria das vezes, não engloba o ato sexual, embora ela tenha toda a liberdade para ter um amante, comumente chamado de danna. É ele que irá “patrocinar” a gueixa, contribuindo ao oki-ya a que ela pertence e à própria, que usará os recursos para os custos altos de sua profissão, entre eles o dos kimonos de seda, caríssimos. Se, da relação com o danna, nascer um filho, ele deverá arcar com os custos da criança, mas não com as demais responsabilidades paternas. É neste ponto que podemos vislumbrar melhor a riqueza deste universo essencialmente feminino: uma vez grávida, a torcida no oki-ya é para que, daquela gestação, nasça uma menina, que possa dar continuidade à linhagem de gueixas. Um menino certamente terá destino menos glamouroso, trabalhando em alguma função auxiliar no oki-ya.

Para essas moças à la personagem de seriado americano, gritar para os quatro cantos que é um absurdo ainda existirem no mundo mulheres que se “sujeitam” a viver uma vida inteira exclusivamente dedicada ao cultivo da beleza, das conversas amenas e da arte para os olhos masculinos é fácil, fácil. Difícil é voltar-se para o próprio umbigo e se dar conta de que não faz algo muito diferente disso. Quando eu era novinha, minha mãe assinava uma dessas revistas de moças adultas para eu ler. Não sei se ela se confundiu, pensando que era pra adolescente, ou se queria que eu visse o que me esperava fora de casa, quando fosse o momento de ir. Todos os meses, eu via os mesmos temas se repetirem: como conquistar um marido através da boa mesa, de uma romântica viagem, de belas músicas no CD Player, de um corpo perfeito, de sexo bem feito e das melhores roupas, cabelos e maquiagem. Na maior parte das vezes, o objetivo era implícito; noutras ele estava ali, subjacente. Até estar bem consigo mesma, através de shiatsu, terapia, yoga, orgasmos, massagem, tinha em última instância o objetivo de sentir-se melhor e – como não? – atrair o sexo oposto. Ah, quanta liberdade... não sabia que para isso foram esturricados tantos soutiens em praça pública.

Tive a sorte de nascer e crescer num lar nada machista. Ok: sorte por um lado, porque esse regime tem alguns efeitos colaterais, como os seus pais terem alguma dificuldade de entender algumas escolhas de “mocinha” que você eventualmente possa fazer. Mas nada de irremediável, devo dizer. Como nunca precisei brigar muito pela altura da saia, o tamanho do biquíni e o horário de chegar, acabei ficando suficientemente livre para admitir vestidos longos, maiôs e vontade de ficar em casa. Dia desses, por exemplo, perguntei para uma amiga se ela me acharia menos livre, caso eu me casasse com um muçulmano e passasse o resto da vida cobrindo o corpo e os cabelos. Ela não respondeu.

Sinceramente, não acredito haver problemas em querer agradar gratuitamente a quem se ama, contanto que isso não signifique uma auto-agressão, uma supressão de desejos e vontades. Fazer uma comidinha, baixar os olhos de pejo, ser delicada e atenciosa – oras, o que há de mal? Isso não faz de nenhuma mulher escrava de um homem. A escravidão vem de algo muito triste, que é a obrigação de enxergar-se menor perante o sexo oposto – coisa que uma gueixa, apesar de agradar e divertir, não faz mesmo. Qual a diferença entre os semanários para “jovens senhoras” dos anos 50, que aconselhavam as mulheres a não aporrinharem seus maridos quando eles chegassem do trabalho cansados e nervosos, e as revistas modernosas de hoje, que vivem a dar “100 dicas” para não deixar o namorado ir embora? Rigorosamente nenhuma.

Pois é: vai ver tenho mesmo olhos de gueixa...

2 comentários:

Anônimo disse...

E por acaso liberdade não é fazer o que se quer fazer? Agora imagina se só houvesse liberdade... Essa palavra tem sentidos por demais, eu gosto do seu ;)

Anônimo disse...

Menina culta essa... me faz sentir pequeno se comparado à ela, e grande por ter a honra de sua amizade.

Ende