Futebol, diz-se, é o esporte das paixões extremadas, da irracionalidade total, da ira, do amor, do ódio, ou de todos esses sentimentos juntos, embolados num misto de muita testosterona e nenhum raciocínio lógico. Eu concordo com tal visão até certo ponto, porque há nessa definição uma omissão séria: cada torcida, em todo canto do mundo, tem seu jeito próprio de demonstrar o amor e a devoção por seu time. Digo isso porque não acredito que o torcedor do Chelsea seja igual ao do Manchester, assim como um botafoguense nunca se parecerá com um flamenguista. O máximo que pode haver são similaridades entre torcedores de diferentes locais: Náutico, Fluminense e São Paulo são historicamente times de elite em seus estados, da mesma forma que Vasco e Palmeiras são clubes de imigrantes (portugueses e italianos, respectivamente) e Santos e Botafogo guardam um passado glorioso; não resta muito a deixar pra posteridade depois de ter em seu plantel Pelé e Garrincha.
É essa singularidade na forma de ser e amar que cria aquela incrível química nos estádios mundo afora. Quando ando pelo Maracanã no intervalo de um jogo, não é só aquela belíssima camisa grená que me identifica como parte de um grupo: compartilho com aquelas pessoas um modo todo especial e único de amar meu time. E, esse time, pra regozijo de minh’alma, é o Fluminense.
Ah, o Fluminense. Como eu poderia não ser tricolor? Ao contrário das crianças que são aliciadas por tios, pais e avós até “virarem a casaca”, eu não tenho memória de um dia sequer na vida ter torcido pra outro time. A família de minha mãe é toda tricolor; meu pai, botafoguense patológico e - por que não dizer? - por muito tempo patético, nunca tentou converter a filha única à religião da Estrela Solitária. Embora ele diga que o fato de eu ser uma menina me “liberou” dessa obrigação penosa, eu tenho cá pra mim que isso foi antes um ato de amor: nos anos 80, torcer para o Botafogo era um sofrimento que nenhuma criança merecia - e ele sabia disso. Se um dia, emprenhado pelos ouvidos e pelos passes de Garrincha, meu pai trocou o Vasco pelo Botafogo, agora amargava sozinho e sem sucessores longos anos de limbo.
Pobre do meu pai. Foram incontáveis os domingos em que ele partia, resignado, do reduto tricolor dos meus avós maternos para ver o Botafogo apanhar de novo em São Januário ou no Maracanã. Quando voltava cabisbaixo e arrasado de mais uma batalha inglória, encontrava uma urbe de impiedosos gozadores. Certa vez, quando abriu a porta, deparou-se comigo gritando “Vascoooo!!!”, vestida com uma camiseta improvisada. O Botafogo havia perdido mais um campeonato, a família ria desbragadamente e eu, aos quatro anos, aprendia o significado da palavra crueldade. Embora meu pai não tenha me dado um time, foi com ele que aprendi a amar o futebol. Ex-jogador profissional e apaixonado pelo esporte, passou a paixão para mim por osmose. Assistir jogos ao seu lado é sempre um prazer, à exceção do “Clássico Vovô” - não sejamos hipócritas, guerra é guerra.
O caso é que sou tricolor, como tricolor é minha mãe e são meus tios, meus primos, meus avós e bisavós, alguns dos quais sócios remidos do Fluminense Football Club. Pra não deixar dúvidas desde o princípio, nasci numa tarde chuvosa na Rua das Laranjeiras, apenas algumas quadras separada da sede do Fluminense. Assim como a maior parte dos tricolores, não sou assídua freqüentadora de estádios, mas acompanho os jogos e o desempenho do time de longe, como um pai cioso de que o filho sabe em que direção a bola vai. Nos momentos decisivos, no entanto, lá estou eu, vestida com o sagrado manto verde, branco e grená, gritando, sorrindo, sofrendo, gemendo e chorando num vale de lágrimas - que pode ser o Maracanã ou o sofá da minha casa. Toda alegria e o sofrimento, evidentemente, são vividos à moda tricolor: somos, por natureza, comedidos, delicados, discretos e levemente arrogantes. Tricolores são, sim, torcedores de punhos de renda. Não é à toa que uma de nossas principais torcidas organizadas entra nos estádios entoando o refrão “Tá chegando a playboyzada”. O Fluminense é e sempre será um time declaradamente de elite, e não tem a menor pretensão de ter o apelo popular de um Flamengo ou de um Corinthians. Somos o que somos, e nos bastamos com nosso mascote engomadinho.
Ser tricolor tem, portanto, um sabor especial. É saber que a sua torcida é a mais bonita do Brasil e que o escrete das arquibancadas faz de você um torcedor dos mais bem acompanhados. Antônio Carlos Jobim, Arthur da Távola, Cartola, Mário Lago, Chico Buarque... Todos ilustres tricolores que batiam ou batem um bolão em suas áreas profissionais. E nunca ouse nos chamar de “tricolores cariocas”: já disse um dos melhores de nós, Nelson Rodrigues, que tricolor é o Fluminense; o resto é time de três cores.
Na última quarta-feira, eu estava no Maracanã. Havia passado três dias pensando se deveria ou não ir ver a final da Copa Sul-Americana, depois do Fluminense apanhar de 5 a 1 da LDU na altitude desleal de Quito. No caminho do trabalho para casa, algo aconteceu. Comecei a ver o movimento ainda tímido dos tricolores andando pela Presidente Vargas em direção aos pontos dos ônibus que os levariam ao jogo. A agonia foi crescendo. Pra um grupo que passou, perguntei se ainda havia ingressos; responderam-me que não. Emburrei e logo pensei: “É, vou comprar no cambista e morrer numa bela grana, mas não posso deixar de ir”. O medo é que algo incrível acontecesse naquele jogo e eu, por mero capricho do destino, não estivesse lá para ver e contar aos meus netos (que, evidentemente, serão tricolores). Quando passamos da Praça da Bandeira, o que vi foi um incrível mar de gente nas três cores que traduzem tradição. Nesse momento, eu já nem dava por mim. Saltei na estátua do Bellini e caminhei, trêmula, em direção à bilheteria, como se fosse a única atitude digna a tomar. Ouvindo toda aquela gente cantar “A bênção, João de Deus” e com a entrada na mão (cadeira azul foi tudo o que me coube no latifúndio do “maior do mundo”), era só passar em casa, tomar um banho e vestir a mais linda de todas as camisas.
Não, o Fluminense não ganhou o campeonato; os 3 a 0 que marcou contra a LDU não foram suficientes para tirar a diferença, após a goleada de Quito. Mas o que vi no Maracanã foi algo muito maior do que isso: uma torcida linda, luminosa, feliz e confiante, que conduziu à frente um time com uma enorme vontade de ser o melhor. Foram quase duas horas de coração acelerado, gritos apaixonados e emoção à flor da pele. Houve um momento em que a angústia me fez ter certeza de que, se sobrevivesse àquilo, deveria parar de ir a estádios quando chegasse à meia idade. Ao fim, sendo os tricolores que sempre fomos, aplaudimos de pé nosso time, que lutou pela vitória lindamente até o fim. É que, tal qual o mendigo de fraque e cartola, mesmo quando nossos punhos andam puídos, ainda andamos eretos, elegantes e empoados, como se estivéssemos a levar o rei na barriga. Nenhuma torcida torna-se conhecida como “pó de arroz” impunemente.
Toda essa montanha russa de emoções rendeu, para mim, uma noite mal-dormida e muita falta de ar, mas não é isso que as grandes paixões causam mundo afora? E essa é a minha vida em verde, branco e grená: lances arrebatadores, tradições familiares, fidelidade canina e, acima de tudo, o amor desmesurado e inconsequente que só o bendito esporte bretão causa nos corações de homens e mulheres como eu.
Um comentário:
Lindo texto!
Eu compartilho a sua paixão, mas, ao mesmo tempo, não poderia ser mais diferente: paulistana que sou, tive a honra de nascer numa família corinthiana. Mãe e pai, hoje tão diferentes um do outro, embutiram em mim os genes populares. Carrego a camisa branca comigo, e, mesmo longe do brasil, todo domingo é dia de saber como anda meu querido time... Afinal, como todos ouviram nossa legião gritar, por todo o ano de 2008, "Eu nunca vou te abandonar". E não deveria ser assim mesmo?
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