27.12.09

Suburbano coração


Se há algo de bom na velha tradição do subúrbio carioca, é o brio. Por lá, há um código moral bem forte, no qual as palavras “orgulho” e “humilhação” tem um peso muito maior do que no lado bacanérrimo do Rebouças. Coisa típica de uma gente humilde que, por não ter Cadillac e champanhota, preservava ciosamente o único bem que possuía: a honra. Sabe aquela história do fio do bigode de um homem valer mais do que um documento com firma reconhecida? Pois é.
Quem nasceu em família suburbana, por mais que tenha tido papais moderninhos, cartão de crédito aos dezesseis e viagens supimpas, guarda sempre em algum cantinho do seu espírito esses valores. Mas como a vida é arteira e finda por nos conduzir pra lugares e pessoas bem distantes da Praça das Nações, não raro esquecemos de nossa essência além-túnel. E é no esquecimento que surge a incontinência pública, a exposição. Escândalo, pra quem não sabe, é coisa que pelo Méier não passa, embora as novelas globais tentem provar o contrário o tempo inteiro - é que os teledramaturgos de lá não vêm; só sabem na base do “ouvi falar”. Se há esparrela fácil, fácil de se cair, é a de que gente humilde é chegada a gritaria e esculhambação. Nananinanão. A classe média baixa carioca, desde que o samba era samba canção, paga com sacrifício aulas de balé e piano pras meninas, tira foto em dia de festa, ensina que não pode “colocar a mão em nada” quando se está na casa dos outros, e também que nunca devemos “nos esganar” nas festas. Assim minha avó criou a minha mãe, e assim minha mãe me criou - com a diferença de que, na minha geração, podia perguntar o porquê das coisas e conversar de igual pra igual. Mudam os tempos, mas determinados conceitos são imutáveis.
E se dá que, um dia, inadvertidamente, sua formação suburbana vem à tona. Você, sempre tão modernosa e divertida, vê-se amarrando uma cara de ofendida daquelas, como se tivessem arrancado um pedaço do seu verniz de boa moça. Não adianta: alguém te enredou num escândalo, expôs sua boa vontade, mostrou algo de (seu) foro íntimo a gente demais. Isso te toca, irrita, aborrece, e a menina de laço de fita no passeio vespertino pela Dias da Cruz fala do estômago (é lá que ela vive) a queixa chorosa, a bronca ressentida. Claro que isso tudo pode acontecer num lapso de minuto; geralmente o tempo de você demonstrar ao ofensor que ele passou do limite. Estando provado por A mais B que você tem lá seus princípios, a menina suburbana sossega e para de espremer suco gástrico, caindo num sono sem pecado. Pronto: você parou de se envenenar. Depois da rebordosa, volta ao velho charme habitual, porque, afinal de contas, essa mulher que se tornou é a colcha de retalhos de uma vida bem rica. E ri, alto e gostoso, de mais uma pernada que a vida tentou te dar.

Um comentário:

Lamaringoni disse...

Ah, esse nosso corpo, sempre nos mostrando as fraquezas da nossa cabeça! Ainda bem, não é mesmo? nada mais horrível do que um "brio" entalado, atravessado na garganta!
fica bem, flor!