18.10.10
O cinzento jardim do esquecimento
Embora eu não pegue filmes em locadora há mais de 10 anos, vira e mexe minha mãe traz pra mim algo que é a minha cara. Foi assim que, dia desses, vi "Grey Gardens".
Produzido por e para a HBO, o filme têm atuações impecáveis de Drew Barrymore e Jessica Lange, respectivamente como Edith Bouvier Beale filha ("Little Edie") e mãe ("Big Edie"). As Edies protagonizaram uma das mais fascinantes e melancólicas histórias reais de nosso tempo; sua trajetória do luxo ao lixo (literalmente, como veremos) é, ao mesmo tempo, incrível e emblemática. Locomotivas da alta sociedade nova-iorquina da primeira metade do século XX, Big e Little Edie viveram cercadas por todos os mimos e requintes possíveis desde o berço. Para se ter uma ideia do pedigree das Beale, basta dizer que mãe e filha eram, respectivamente, tia e prima de Jacqueline Bouvier, que se tornaria Jacqueline Kennedy, a mais aclamada das primeiras-damas norte-americanas.
Em plena depressão pós-crise de 29, Big Edie, artista sazonal em saraus da sociedade, se divorcia do marido Phelan Beale e finca raízes na belíssima mansão de veraneio conhecida como Grey Gardens. Alguns anos depois, Little Edie abandona as tentativas de fazer sucesso como artista em Nova Iorque e junta-se à mãe. Vivendo da mísera pensão paga por Phelan, as Beales entram em franca decadência. O outrora luxuoso solar de 28 quartos se transforma num depósito de sujeira, sem luz, gás ou água encanada, onde mãe e filha dividem espaço com pulgas, gatos e guaxinins. Por 20 anos ficam isoladas do mundo, vivendo num estado de extrema miséria e imundície, até que a interdição da casa pela vigilância sanitária chama a atenção da imprensa e lança novamente luz sobre elas. Jacqueline Kennedy, então já casada com Aristóteles Onassis, se compadece da situação das parentes e reforma Grey Gardens. Atraídos pela excentricidade das Beales, no início dos anos 70 os irmãos Maysles rodam um documentário sobre seu cotidiano, que vira um clássico instantâneo do cinema cult.
De toda essa história singular e pitoresca, o que mais me causa estranhamento é, justamente, a causa principal da decadência das Beale: a capacidade humana de esquecer. A bem da verdade, o que aconteceu a elas nada mais é do que a exacerbação do esquecimento, em dimensões colossais e dolorosas. Lentamente, elas foram se esvanecendo das memórias de amigos e parentes, até que sua outrora colorida existência se materializou unicamente dentro dos limites de Grey Gardens. Vez por outra, numa garden party da vida, Madame X devia questionar Madame Y se sabia que fim tiveram as Edies. Diante da negativa, emendava-se outro assunto e pronto.
O destino das Beale, para uma viciada em memórias como eu, é incompreensível. Aqui não vai nenhum julgamento moral, é bom deixar claro; só considero estranho, triste. O fato é que sofro de uma incapacidade crônica de esquecer, e não consigo apartar, no tempo, o cadinho de importância que cada pessoa teve na minha vida. Vivos ou mortos, presentes ou ausentes, cada um ocupa em mim o espaço que sempre ocupou. Nunca tive relacionamentos de ocasião, nem ousei usar pessoas como figurantes do meu épico particular. Ainda quando a minha vaidade, ou o destino, se ocupam de tirar alguém de cena, eu lembro - sempre. Tenho 30 anos e ainda não posso dizer se esse comportamento, tão natural pra mim, é bom ou ruim. Sei que ele por vezes me rende noites intranquilas, com sonhos que se repetem, imagens que vão e voltam num tormento que só termina quando acordo.
Vai ver o destino dos que não esquecem de nada é estar lá, um dia, tal qual Little Edie em seu maiô, cantando marchas marciais de antanho na varanda esboroada de uma caquética mansão. Pelo menos ela manteve as belas pernas até o fim.
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3 comentários:
Aff! Fui mexer na minha conta e acabei excluindo o comentário. Enfim, eu basicamente concordava. É um filme desolador, não?! Quando assisti, passei a noite toda com o filme na cabeça. Triste!
Também foi assim comigo! Fiquei piradinha.
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