14.3.10

Realismo Fantástico


Por que tinha de se lembrar daquele verão? Em que ponto, num dia de praia e conversa fiada, cometeu o erro de falar de tantas coisas já vividas, passadas, cicatrizadas?
E não teve jeito: deste novelo, nunca se podia puxar uma ponta de linha sem que ele todo se desenrolasse. Chegou em casa, tirou o sal de mar do corpo e enterrou a cabeça em alfarrábios e fotos perdidas na sua bagunça digital. Pronto, já tinha caído na trama, emaranhada naquela lã maviosa que esquenta e, por vezes, sufoca.
Passados tantos invernos, aquele foi o único verão em que estiveram juntos. Agora, apesar de toda a vida que a separava daquele tempo, as cores das fotografias pareciam explodir de tanto vigor. Os brancos sorrisos, o dourado das areias, sua pele jambo, o castanho dos cabelos desgrenhados pelo vento e a lua amarelada boiando no céu de fim de tarde, azul como seu jeans e a camiseta que ele vestia. Além do corpo mais jovem e delgado, reconhecia em seus olhos uma ternura de amor de gente moça que, havia muito, a abandonara.
Naquela noite, se amaram como nunca antes. Quiseram-se com a ânsia e o desejo de quem há muito esperava por aquele reencontro de corpos que pareciam feitos sob medida um para o outro. Em seu íntimo, tinham consciência de que o fim estava próximo; as marés tropicais iam levá-los definitivamente para costas distantes. Contudo, não poderiam deixar de viver o que restava até o fim.
Sofreu a dor de uma morte quando tudo terminou. Refeita, teve outros encontros e um amor novo em folha. Aquele misto de apreensão e alegria, aquela paixão tão forte e, ao mesmo tempo, tão frágil, porém, não viveria nunca mais. E, quando olhava as antigas fotos, sentia cada vez menos saudades dele do que de si mesma.

Um comentário:

Lamaringoni disse...

não sei se é mais triste sentir saudades de um amor que já foi, ou de um que poderia ter sido. sentir saudades da gente mesma
é, das três, a menos pior: mesmo que velhas, podemos sempre encontrar uma partezinha nossa que esconde algo daquilo que fomos um dia. é só olharmos direitinho, com a paciência de um detetive. Não é?