9.4.10

Um morto


Depois de algumas noites mal dormidas, naquela manhã acordara de um sono angelical, gozado sem aditivos químicos. Era um dia chuvoso e tristonho de outono, e saiu mais cedo do trabalho. Se havia sido liberada na hora do almoço, presume-se, deveria estar feliz, pois a felicidade nesses casos parece ser compulsória. No entanto, para ela, que conhecia como a palma da mão cada metro quadrado de mosaico português da cidade, mudanças de rotina como essa tinham outro significado. Atirar-se às ruas do Centro em dias como aquele lhe trazia o risco de ser tragada pelo buraco negro de sua própria história. Uma coisa era passar por ali indo e voltando da labuta; outra bem diferente era ficar ao sabor da vadiagem. A tentação de reviver, mesmo que por algumas horas, os tempos em que fora uma jovilíssima flâneuse, estava sempre rondando. O penhor de se deixar enredar costumava ser pesaroso.

Tentando salvaguardar os hábitos diários, foi comer o sanduíche de costume no restaurante de costume. Sentou-se onde sempre se sentava, naquela partezinha da frente, com vista para a rua, pequena e com pouco falatório; cada vez tinha menos paciência com gente, embora conseguisse disfarçar bem, muito bem. Para complementar o lanche-almoço, pediu uma diminuta tigelinha de creme de feijão, que começou a tomar com gosto. "Temperinho bom, bastante alho", pensou. Ao cortar o pãozinho pra molhar no acepipe, ergueu a cabeça rapidamente e mirou a calçada através do vidro. Foi o tempo preciso para ver seu passado passar. É, tal qual na música dos Paralamas, e ela que nem gostava de rock...

Era um morto que andava e olhava para dentro do restaurante. Ela reconhecia o corpo e a mortalha vermelha. Num gesto rápido, mais instintivo que calculado, fixou-se na imagem o tempo suficiente para ter certeza de quem era, cuidando para desviar o olhar a tempo de não ser notada. Sabia como poderia ser desconcertante, para alguém com nervos de manteiga, sangue nas veias e coração pulsante, ser percebida por quem não habita mais este mundo - o seu mundo. Numa fração de segundos torceu para que ele não se animasse a entrar ali, tornando o infeliz reencontro inevitável. Ah, foi embora. Alívio! Mas ainda ficara atordoada pela visão fantasmagórica, a ponto de dispender um par de minutos ao telefone com uma boa amiga. Vi um morto, disse. Sua fealdade me assombrou.

Passado o susto e uma leve rebordosa, fez o circuitinho dos velhos tempos. Entediada, percebeu que algumas cores da cidade esmaeceram diante de seus olhos semi-balzacos. Cansou-se. Felizmente, o mesmo tempo que trouxera à sua vida menos disposição para andar até o metrô trouxe também dinheiro suficiente para o taxi. Pela janela, na altura da Central do Brasil, o sol entrava desbragadamente, incomandando a vista, a despeito da chuva renitente. Agora, já estava bem mais perto de casa.

Um comentário:

Fabiana disse...

E há quem diga que não acredita em fantasmas. Os meus resolveram me deixar em paz. Ou eu resolvi me deixar em paz, haha. Adorei o texto, como sempre. Bjs.