24.12.10
Achados e perdidos
Há tempos que perdi mundo afora um par de belas quimeras. Eram lindas ilusões em feitio de flor. Vez por outra me lembrava delas e, perdida em pensamentos, me perguntava que fim teriam levado. Hoje, flanando numa assaz caliente noite bonaerense, penso que casualmente as encontrei, embora - mea culpa - nunca tenha feito por onde reavê-las. Até palpitou meu coração - ora, ora, se não são elas! - contudo não as tomei de volta. Na pequena valise que trouxe neste recesso natalino, elas pesariam como chumbo. Além disso, hoje moro num apartamento bem menor, modos que as belas quimeras ocupariam demasiado espaço, atravancando a sala e a vida. Assim sendo, no frescor sincero do ar condicionado de hotel, fiz-lhes esse continho chiquito e desajeitado, em honra aos velhos tempos, e as deixo viver em paz, para que em paz também me deixem viver.
18.10.10
O cinzento jardim do esquecimento
Embora eu não pegue filmes em locadora há mais de 10 anos, vira e mexe minha mãe traz pra mim algo que é a minha cara. Foi assim que, dia desses, vi "Grey Gardens".
Produzido por e para a HBO, o filme têm atuações impecáveis de Drew Barrymore e Jessica Lange, respectivamente como Edith Bouvier Beale filha ("Little Edie") e mãe ("Big Edie"). As Edies protagonizaram uma das mais fascinantes e melancólicas histórias reais de nosso tempo; sua trajetória do luxo ao lixo (literalmente, como veremos) é, ao mesmo tempo, incrível e emblemática. Locomotivas da alta sociedade nova-iorquina da primeira metade do século XX, Big e Little Edie viveram cercadas por todos os mimos e requintes possíveis desde o berço. Para se ter uma ideia do pedigree das Beale, basta dizer que mãe e filha eram, respectivamente, tia e prima de Jacqueline Bouvier, que se tornaria Jacqueline Kennedy, a mais aclamada das primeiras-damas norte-americanas.
Em plena depressão pós-crise de 29, Big Edie, artista sazonal em saraus da sociedade, se divorcia do marido Phelan Beale e finca raízes na belíssima mansão de veraneio conhecida como Grey Gardens. Alguns anos depois, Little Edie abandona as tentativas de fazer sucesso como artista em Nova Iorque e junta-se à mãe. Vivendo da mísera pensão paga por Phelan, as Beales entram em franca decadência. O outrora luxuoso solar de 28 quartos se transforma num depósito de sujeira, sem luz, gás ou água encanada, onde mãe e filha dividem espaço com pulgas, gatos e guaxinins. Por 20 anos ficam isoladas do mundo, vivendo num estado de extrema miséria e imundície, até que a interdição da casa pela vigilância sanitária chama a atenção da imprensa e lança novamente luz sobre elas. Jacqueline Kennedy, então já casada com Aristóteles Onassis, se compadece da situação das parentes e reforma Grey Gardens. Atraídos pela excentricidade das Beales, no início dos anos 70 os irmãos Maysles rodam um documentário sobre seu cotidiano, que vira um clássico instantâneo do cinema cult.
De toda essa história singular e pitoresca, o que mais me causa estranhamento é, justamente, a causa principal da decadência das Beale: a capacidade humana de esquecer. A bem da verdade, o que aconteceu a elas nada mais é do que a exacerbação do esquecimento, em dimensões colossais e dolorosas. Lentamente, elas foram se esvanecendo das memórias de amigos e parentes, até que sua outrora colorida existência se materializou unicamente dentro dos limites de Grey Gardens. Vez por outra, numa garden party da vida, Madame X devia questionar Madame Y se sabia que fim tiveram as Edies. Diante da negativa, emendava-se outro assunto e pronto.
O destino das Beale, para uma viciada em memórias como eu, é incompreensível. Aqui não vai nenhum julgamento moral, é bom deixar claro; só considero estranho, triste. O fato é que sofro de uma incapacidade crônica de esquecer, e não consigo apartar, no tempo, o cadinho de importância que cada pessoa teve na minha vida. Vivos ou mortos, presentes ou ausentes, cada um ocupa em mim o espaço que sempre ocupou. Nunca tive relacionamentos de ocasião, nem ousei usar pessoas como figurantes do meu épico particular. Ainda quando a minha vaidade, ou o destino, se ocupam de tirar alguém de cena, eu lembro - sempre. Tenho 30 anos e ainda não posso dizer se esse comportamento, tão natural pra mim, é bom ou ruim. Sei que ele por vezes me rende noites intranquilas, com sonhos que se repetem, imagens que vão e voltam num tormento que só termina quando acordo.
Vai ver o destino dos que não esquecem de nada é estar lá, um dia, tal qual Little Edie em seu maiô, cantando marchas marciais de antanho na varanda esboroada de uma caquética mansão. Pelo menos ela manteve as belas pernas até o fim.
17.10.10
7.10.10
O jabazinho nosso
Hoje tem coluna minha no Concurseiro Solitário. Apesar do blog ser direcionado para o público que estuda pra concursos públicos, acho que o artigo pode ser uma leitura bacaninha pra qualquer pessoa. Acessem o link aí ao lado, na coluna "Dissonâncias", ou aqui: www.concurseirosolitario.blogspot.com
Espero que gostem!
Espero que gostem!
4.10.10
Pílulas VII
Eu sou a senhora das dores velhas; não tentem me impedir de senti-las enquanto eu puder. Minhas estações são longas e meus amores eu forjo em aço. E, assim, na lenta marcha do tempo que levo para (não) esquecer, mantenho os cabelos castanhos e a alma cheirando a guardada.
22.9.10
Ouvidor
É claro, meu bem, que tudo foi importante. O dia em que te conheci e nem cogitei te querer. A primeira vez que nossos olhos se entenderam. E aquela noite - Deus, tanto tempo faz! - que você se atreveu a pegar na minha mão. E tudo que veio depois. O beijo roubado e o consentido. A rusga, a confusão. Você, alquebrado. Eu, altiva, tive vontade de te pegar no colo - e peguei. Daí pro inevitável acontecer, foi questão de tempo.
E veio tudo aos borbotões, como uma hemorragia quente e viscosa. Por vezes te levava no lombo, mansa, boa, patológica. Concessões, separações, reencontros, tentativas, desejo, dor, excessos. A alma mastigada, amarfanhada como roupa torcida. Tudo importante, como já disse. Pausa, recomeço, o fim. Tudo importante, muito importante.
Mas nada, meu caro
Absolutamente nada
Nem um carinho
Um beijo
Ou a noite de amor mais abusada
Os entardeceres na Guanabara
Os amanheceres no Arpoador
Os euteamos - inúmeros
Nada, nada, nada
É comparável ao dia em que, vestida de fresco, desci a Rua do Carmo, entrei na Ouvidor e dobrei a esquina da Travessa de mãos dadas com outro homem.
19.9.10
Todo o Sentimento
Sexta-feira depois do almoço, lá no trabalho, naquela moleza de sol quente, trocávamos supresinhas pelo Bluetooth, até que Claudia me mandou uma gravação ao vivo de Todo Sentimento, interpretada por Maria Bethânia. Já tinha me esquecido da paixão que essa música sempre despertou em mim.
Todo o Sentimento
Chico Buarque
Chico Buarque e Cristovão Bastos
Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.
Todo o Sentimento
Chico Buarque
Chico Buarque e Cristovão Bastos
Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.
14.9.10
Àquele homem
Desculpe vir assim, altas horas, falar de coisa enterrada, passada. Eu não devia, e você me perdoe. Claro que eu sei que não tem volta, nem eu ia querer, creia-me. E tantas águas rolaram, tantos homens me amaram, tudo o mais. Mas tem dias que eu sonho, e vem uma dor, sabe?, dor estranha. Uma agulhada. Não, não é agulhada: é dor de cirurgia velha. Ah, você não sabe como é, óbvio. Eu explico. Incisões de bisturi cicatrizam, mas aquele lugar onde o aço afiado passou cortando nunca mais é o mesmo, e dói uma dor chata da porra quando muda o tempo. Pois é, é assim. E incomoda pacas quando eu sonho, assim como dói no inverno essa merda de corte do lado esquerdo do meu peito. Quer dizer: do lado esquerdo do meu seio esquerdo. Memória incômoda daquele nódulo, célula pequena e angustiada que cresceu, cresceu, cresceu, até que precisou ser extirpada. Ela se foi; você também. E eu que me vire com essa amargurazinha sazonal.
18.7.10
Pelo direito de ser só
Não, nenhuma síndrome de Greta Garbo - isto é um manifesto. Simples: eu tenho e quero exercer o direito de ser só. Por que viajo/vou ao cinema/teatro/almoço/janto/pego uma praiana sozinha? Por que não chamo alguém? Por que?
PORQUE EU NÃO QUERO!
Porque eu também viajo/vou ao cinema/teatro/almoço/janto/pego uma praiana com os amigos, mas isso não me impede de fazer todas essas coisas sozinha - com o mesmo prazer. Não é uma questão de não gostar de companhia ou de ser uma misantropa encruada. Eu adoro estar com pessoas! É delicioso jogar conversa fora, rir junto, lembrar histórias, além de ter - e ser - alguém com quem se pode contar. Valorizo a amizade como um presente divino e cultivo com carinho as minhas relações; tenho colegas, amigos e até mesmo irmãos que escolhi vida afora. Confesso que passo tempos sem falar com alguns, mas todos - sem exceção - sabem que estou sempre disponível, e que prezo sobremaneira minhas relações. É que não acho necessário andar grudada nas pessoas, ou choramingando atenção, para que elas me tenham em alta conta. Certa ou errada, o fato é que sou compreendida por quem me importa, ponto final, acabou.
Aos eternos carentes, lamento: ninguém vai me censurar, ainda que com um olhar de sincera preocupação, por viajar sozinha nas minhas férias ou nos feriados prolongados. Não me pode ser negado o prazer de eleger um destino, descolar um vôo barato, reservar um hotel e zarpar. Sempre fiz isso. De uma vez por todas: se há quem me faça companhia, eu vou acompanhada; se não há, eu vou só sem Anália, mas eu vou, já dizia Caymmi.
Sozinhos somos todos, por definição. Se você ainda não se convenceu disso, é melhor ir começando a se acostumar.
3.7.10
Ansiedade
... ah, um dia ela ainda me mata. Por enquanto, vou tomar uma talagada de Kafka. Bonne chance pra quem fica.
16.6.10
5.6.10
Areal, 26 de maio de 2010
Lá fora, uma noite das mais belas. As poucas luzes do interior fazem com que o céu pareça mais negro, e a lua, mais clara. Ganas de desligar os faróis e vir assim, estrada afora, guiada pela luz da lua.
Sinto-me estranhamente feliz. Tantos desencontros nos últimos meses deveriam ter me cansado mais, mas apesar da provisoriedade da vida de hotel de segunda a sexta e da casa dos pais nos finais de semana, não consigo me chatear verdadeiramente. Poderia atribuir isso a toda tranquilidade que agora me cerca no trabalho e na vida, mas não é isso - ou, pelo menos, não apenas. É como se algo mais profundo e denso houvesse se mudado de dentro de mim. Não, não me tornei indiferente ao futuro, imagine! Ainda quero muitas coisas, e coisas diferentes. Só que agora tenho calma.
Viverei uma vida e ainda me surpreenderei com a minha capacidade de assimilação de mudanças, por mais radicais que elas sejam. O caminho por onde vim andando, por vezes ansiosa, desde criança, me fez assim. Agora, esqueço de carregar o celular, de responder emails, de ver notícias no jornal. A vida social está zerada e passo horas e horas comigo. Sei que tudo isso não dura pra sempre, e é por isso que não sou capaz de me perturbar. Melhor degustar a calmaria e preparar o espírito pra quando for necessário retomar a carga. A inquietação é parte de mim, ainda que por vezes adormecida.
Areal continua diminuta como sempre. Voltando do trabalho, paro o carro em frente à padaria da rua principal, hoje urbanizada, outrora de terra batida. Ali, quando eu era bem pequena, tive a visão de um touro furioso correndo atrás de mim e das primas da roça, num dia de casamento. Jamais passaria por minha cabeça que, um dia, aquela cidadezinha me acolheria tão gostosamente.
Sei que, nos próximos meses, terei decisões importantes a tomar. É preciso voltar a pensar na “grande” vida, e correr atrás, e fazer planos, nem que seja pra eles se desfazerem no ar enquanto outra coisa diferente nasce, menos ou mais pretensiosa, em seu lugar. Por enquanto, deixo que as coisas sigam seu rumo manso, mansinho. Pausa e fôlego.
Sinto-me estranhamente feliz. Tantos desencontros nos últimos meses deveriam ter me cansado mais, mas apesar da provisoriedade da vida de hotel de segunda a sexta e da casa dos pais nos finais de semana, não consigo me chatear verdadeiramente. Poderia atribuir isso a toda tranquilidade que agora me cerca no trabalho e na vida, mas não é isso - ou, pelo menos, não apenas. É como se algo mais profundo e denso houvesse se mudado de dentro de mim. Não, não me tornei indiferente ao futuro, imagine! Ainda quero muitas coisas, e coisas diferentes. Só que agora tenho calma.
Viverei uma vida e ainda me surpreenderei com a minha capacidade de assimilação de mudanças, por mais radicais que elas sejam. O caminho por onde vim andando, por vezes ansiosa, desde criança, me fez assim. Agora, esqueço de carregar o celular, de responder emails, de ver notícias no jornal. A vida social está zerada e passo horas e horas comigo. Sei que tudo isso não dura pra sempre, e é por isso que não sou capaz de me perturbar. Melhor degustar a calmaria e preparar o espírito pra quando for necessário retomar a carga. A inquietação é parte de mim, ainda que por vezes adormecida.
Areal continua diminuta como sempre. Voltando do trabalho, paro o carro em frente à padaria da rua principal, hoje urbanizada, outrora de terra batida. Ali, quando eu era bem pequena, tive a visão de um touro furioso correndo atrás de mim e das primas da roça, num dia de casamento. Jamais passaria por minha cabeça que, um dia, aquela cidadezinha me acolheria tão gostosamente.
Sei que, nos próximos meses, terei decisões importantes a tomar. É preciso voltar a pensar na “grande” vida, e correr atrás, e fazer planos, nem que seja pra eles se desfazerem no ar enquanto outra coisa diferente nasce, menos ou mais pretensiosa, em seu lugar. Por enquanto, deixo que as coisas sigam seu rumo manso, mansinho. Pausa e fôlego.
18.4.10
Me explica, me ensina, me diz
Por que algumas pessoas parecem tão bonitas quando a gente gosta delas e, depois que deixamos de gostar, nem parecem tão belas assim?
Por que, a cada ano que passa, fica tão mais fácil engordar e tão mais difícil emagrecer?
Por que cada pessoa que conhecemos faz uma leitura tão singular da nossa personalidade? Isso parte da gente ou parte deles?
Por que minha própria companhia quase sempre é tão agradável, mas ultimamente anda me dando sono?
Por que há fases em que viver parece cansar mais do que o normal?
Por que, a cada ano que passa, fica tão mais fácil engordar e tão mais difícil emagrecer?
Por que cada pessoa que conhecemos faz uma leitura tão singular da nossa personalidade? Isso parte da gente ou parte deles?
Por que minha própria companhia quase sempre é tão agradável, mas ultimamente anda me dando sono?
Por que há fases em que viver parece cansar mais do que o normal?
9.4.10
Um morto
Depois de algumas noites mal dormidas, naquela manhã acordara de um sono angelical, gozado sem aditivos químicos. Era um dia chuvoso e tristonho de outono, e saiu mais cedo do trabalho. Se havia sido liberada na hora do almoço, presume-se, deveria estar feliz, pois a felicidade nesses casos parece ser compulsória. No entanto, para ela, que conhecia como a palma da mão cada metro quadrado de mosaico português da cidade, mudanças de rotina como essa tinham outro significado. Atirar-se às ruas do Centro em dias como aquele lhe trazia o risco de ser tragada pelo buraco negro de sua própria história. Uma coisa era passar por ali indo e voltando da labuta; outra bem diferente era ficar ao sabor da vadiagem. A tentação de reviver, mesmo que por algumas horas, os tempos em que fora uma jovilíssima flâneuse, estava sempre rondando. O penhor de se deixar enredar costumava ser pesaroso.
Tentando salvaguardar os hábitos diários, foi comer o sanduíche de costume no restaurante de costume. Sentou-se onde sempre se sentava, naquela partezinha da frente, com vista para a rua, pequena e com pouco falatório; cada vez tinha menos paciência com gente, embora conseguisse disfarçar bem, muito bem. Para complementar o lanche-almoço, pediu uma diminuta tigelinha de creme de feijão, que começou a tomar com gosto. "Temperinho bom, bastante alho", pensou. Ao cortar o pãozinho pra molhar no acepipe, ergueu a cabeça rapidamente e mirou a calçada através do vidro. Foi o tempo preciso para ver seu passado passar. É, tal qual na música dos Paralamas, e ela que nem gostava de rock...
Era um morto que andava e olhava para dentro do restaurante. Ela reconhecia o corpo e a mortalha vermelha. Num gesto rápido, mais instintivo que calculado, fixou-se na imagem o tempo suficiente para ter certeza de quem era, cuidando para desviar o olhar a tempo de não ser notada. Sabia como poderia ser desconcertante, para alguém com nervos de manteiga, sangue nas veias e coração pulsante, ser percebida por quem não habita mais este mundo - o seu mundo. Numa fração de segundos torceu para que ele não se animasse a entrar ali, tornando o infeliz reencontro inevitável. Ah, foi embora. Alívio! Mas ainda ficara atordoada pela visão fantasmagórica, a ponto de dispender um par de minutos ao telefone com uma boa amiga. Vi um morto, disse. Sua fealdade me assombrou.
Passado o susto e uma leve rebordosa, fez o circuitinho dos velhos tempos. Entediada, percebeu que algumas cores da cidade esmaeceram diante de seus olhos semi-balzacos. Cansou-se. Felizmente, o mesmo tempo que trouxera à sua vida menos disposição para andar até o metrô trouxe também dinheiro suficiente para o taxi. Pela janela, na altura da Central do Brasil, o sol entrava desbragadamente, incomandando a vista, a despeito da chuva renitente. Agora, já estava bem mais perto de casa.
3.4.10
Um exercício
Eu sou impaciente e desesperada.
Tá, disso todo mundo já sabe.
É que eu não sou assim sempre - digo, nas condições normais de temperatura e pressão. Se minha vida estiver virginianamente organizada, do modo como eu gosto, fico calma, calma, calma. Agora, coloque uma bagunça, uma indecisão, um vai-não-vai, e você verá a pessoa mais rabugenta, chata e ansiosa do mundo em ação. Um dos motivos que me fizeram escolher prestar concursos, além da minha paixão pela administração pública (e isso não é sarcasmo, caso não dê pra notar), é a estabilidade. ESTABILIDADE! Horários, salário certo, mudanças de rotina e emprego que dependem única e exclusivamente DE MIM, e não da boa vontade e simpatia de ninguém.
E assim foi por um bom tempo... até acontecer meu novo emprego. É público, paga melhor que o anterior, mas está me matando. Há uma semana sentei praça na nova autarquia e, até agora, já "morei" em três cidades diferentes e "exerci" pelo menos umas três funções. Na prática, foram os quatro dias mais improdutivos que já vivi. À espera de que a administração decida o que fazer comigo e com os outros convocados, passei dias sentada numa sala de reunião numa dinâmica de convivência à la Big Brother. Demos todos aqueles passos clássicos: cumprimentar-se, contar da própria vida, observar, fazer fofoca, confabular planos estratégicos e, por fim, entrar na decadência total, que é falar mal dos outros.
Estou exausta. Desde segunda que mal como e durmo bem mais ou menos. A cada dia é uma nova apreensão, uma ardência mais ardida na boca do estômago. Já chorei, sorri, esperneei e me virei do avesso de raiva. E de nada adiantou, claro. Na ilusão de ser cada vez mais dona da minha vida, perdi totalmente o controle sobre o meu destino. Que merda.
Mas o lance, meus amigos, é aproveitar essa liçãozinha que o mundo parece querer me dar. Não há nada a fazer, a não ser aprender (ou pelo menos tentar) a ser um bocadinho paciente e tranquila, já que nem tudo está ao alcance imediato das minhas mãos. Duvido muito que eu consiga, mas juro que continuarei tentando. Só espero não pirar de vez até o final dessa odisseia.
Tá, disso todo mundo já sabe.
É que eu não sou assim sempre - digo, nas condições normais de temperatura e pressão. Se minha vida estiver virginianamente organizada, do modo como eu gosto, fico calma, calma, calma. Agora, coloque uma bagunça, uma indecisão, um vai-não-vai, e você verá a pessoa mais rabugenta, chata e ansiosa do mundo em ação. Um dos motivos que me fizeram escolher prestar concursos, além da minha paixão pela administração pública (e isso não é sarcasmo, caso não dê pra notar), é a estabilidade. ESTABILIDADE! Horários, salário certo, mudanças de rotina e emprego que dependem única e exclusivamente DE MIM, e não da boa vontade e simpatia de ninguém.
E assim foi por um bom tempo... até acontecer meu novo emprego. É público, paga melhor que o anterior, mas está me matando. Há uma semana sentei praça na nova autarquia e, até agora, já "morei" em três cidades diferentes e "exerci" pelo menos umas três funções. Na prática, foram os quatro dias mais improdutivos que já vivi. À espera de que a administração decida o que fazer comigo e com os outros convocados, passei dias sentada numa sala de reunião numa dinâmica de convivência à la Big Brother. Demos todos aqueles passos clássicos: cumprimentar-se, contar da própria vida, observar, fazer fofoca, confabular planos estratégicos e, por fim, entrar na decadência total, que é falar mal dos outros.
Estou exausta. Desde segunda que mal como e durmo bem mais ou menos. A cada dia é uma nova apreensão, uma ardência mais ardida na boca do estômago. Já chorei, sorri, esperneei e me virei do avesso de raiva. E de nada adiantou, claro. Na ilusão de ser cada vez mais dona da minha vida, perdi totalmente o controle sobre o meu destino. Que merda.
Mas o lance, meus amigos, é aproveitar essa liçãozinha que o mundo parece querer me dar. Não há nada a fazer, a não ser aprender (ou pelo menos tentar) a ser um bocadinho paciente e tranquila, já que nem tudo está ao alcance imediato das minhas mãos. Duvido muito que eu consiga, mas juro que continuarei tentando. Só espero não pirar de vez até o final dessa odisseia.
22.3.10
Gitana
Hoje o blog vira diário eletrônico comme il fault.
Amanhã será um dia daqueles decisivos. Em síntese, saberei o lugar onde morarei, pelo menos, pelos próximos 2 ou 3 anos.
Se estou preocupada, ansiosa, com tosse nervosa e numa agitação ímpar? Claro! Minha caixa de Olcadil que o diga. Mas, ainda assim, tem uma porçãozinha de mim que se mantém calma, centrada, orientada, fazendo planos para cada uma das opções, pensando na logística da coisa, nos novos hábitos, nas inúmeras despesas.
Não, mudanças físicas não me assustam: desde os 7 anos, quando saí do Rio pela primeira vez, já morei em um monte de cidades. Pela minha boca, já brotaram vários sotaques (crianças e a sua permeabilidade...) e saíram os vários nomes que alimentos e objetos têm em diferentes locais do Brasil (Aipim? Mandioca? Macaxeira? Tudo a mesma coisa!) Não sinto medo, nem um receiozinho sequer. Nada. Meu desejo é sempre me atirar - seja pro noroeste do Canadá ou pra uma cidadezinha acanhada no interior do Rio de Janeiro.
Se há algo que aprendi com tantas idas e vindas, é que sobrevive à distância o que deve sobreviver. Um amor pode viver luminoso, forte e inabalável a milhares de quilômetros, para depois se fragilizar e partir quando a pele de um roça a do outro. Uma família pode ser unida mesmo quando um está no Hemsfério Norte e o outro no Sul, mas não sobrevive à desconfiança e à ingratidão - seja ao vivo ou via satélite. Uma amizade começada na infância pode durar 20 anos, mesmo que por 18 deles todo o contato tenha sido por cartas, telefonemas e emails. É essa a missa que rezo quando meus amigos se veem na situação em que estou agora e - adivinhem? - vêm pedir conselhos a mim, uma espécie de expert na matéria. No início, ficam um pouco desconfiados, cabreiros, mas depois se convencem de que é assim mesmo.
Sem qualquer paúra, eu vou sair do Rio pela terceira vez em minha vida. Deixarei muito pouco pra trás: algumas sessões de teatro, metrô lotado, barulho de fuzil na madrugada, cinema, trânsito infernal, custo de vida exorbitante, shows bacaninhas, calor insuportável, alguns domingos em Ipanema. Da frivolidade, vão na minha mala cheia os sapatos, os vestidos, as dietas e os cosméticos; tudo muito novo, como novo e breve foi esse quase ano e meio que por aqui fiquei. O essencial - que é invisível aos olhos, já dizia a raposa - vai dentro de mim.
14.3.10
Realismo Fantástico
Por que tinha de se lembrar daquele verão? Em que ponto, num dia de praia e conversa fiada, cometeu o erro de falar de tantas coisas já vividas, passadas, cicatrizadas?
E não teve jeito: deste novelo, nunca se podia puxar uma ponta de linha sem que ele todo se desenrolasse. Chegou em casa, tirou o sal de mar do corpo e enterrou a cabeça em alfarrábios e fotos perdidas na sua bagunça digital. Pronto, já tinha caído na trama, emaranhada naquela lã maviosa que esquenta e, por vezes, sufoca.
Passados tantos invernos, aquele foi o único verão em que estiveram juntos. Agora, apesar de toda a vida que a separava daquele tempo, as cores das fotografias pareciam explodir de tanto vigor. Os brancos sorrisos, o dourado das areias, sua pele jambo, o castanho dos cabelos desgrenhados pelo vento e a lua amarelada boiando no céu de fim de tarde, azul como seu jeans e a camiseta que ele vestia. Além do corpo mais jovem e delgado, reconhecia em seus olhos uma ternura de amor de gente moça que, havia muito, a abandonara.
Naquela noite, se amaram como nunca antes. Quiseram-se com a ânsia e o desejo de quem há muito esperava por aquele reencontro de corpos que pareciam feitos sob medida um para o outro. Em seu íntimo, tinham consciência de que o fim estava próximo; as marés tropicais iam levá-los definitivamente para costas distantes. Contudo, não poderiam deixar de viver o que restava até o fim.
Sofreu a dor de uma morte quando tudo terminou. Refeita, teve outros encontros e um amor novo em folha. Aquele misto de apreensão e alegria, aquela paixão tão forte e, ao mesmo tempo, tão frágil, porém, não viveria nunca mais. E, quando olhava as antigas fotos, sentia cada vez menos saudades dele do que de si mesma.
13.3.10
A Confusão de Gêneros
Estranhe quem quiser estranhar, mas o fato é que eu não tenho mais televisão. Abolir esse eletrodoméstico não foi um ato de protesto contra o mundo capitalista ocidental ou coisa que o valha. A verdade é que o aparelho pifou, eu tive preguiça de consertá-lo ou comprar um novo, os meses foram se passando... e, um belo dia, já não fazia mais a menor falta. Minha relação com a TV sempre foi assim: tendo, eu assisto; não tendo, passo muito bem, obrigada.
Se uma vida sem televisão eu tiro de letra, o mesmo não posso dizer da internet, e como as mídias estão aí, misturadas, é por blogs, sites de notícias e tweets que eu fico sabendo o que rola neste Big Brother Brasil 10. A versão tupiniquim do reality show, até onde sei, é a mais prolífica do mundo - gostamos mesmo de bisbilhotar a vida alheia pelo buraco da fechadura, ou pela grande e absoluta janela de uma TV ligada na sala de estar. Ao que parece, cada edição tem lá suas polêmicas, e a bola da vez são os conflitos de sexualidade. O grande, forte e rústico lutador seria o ápice do contraponto heterossexual aos “coloridos” homossexuais.
Pois bem: acho que não é o caso de discutir as opiniões e (im)posturas do tal lutador; suas concepções pessoais são o oposto do que penso, vivo e acredito e, creio eu, os meus amigos que por aqui passam certamente partilham de minha opinião. O que me choca, na verdade, não é o Brasil tacanha que elegeu o rapaz como porta-voz, mas sim o modo como a opinião pública e os próprios participantes reagem à confusão de gêneros que veio à tona.
Tudo começou com a moça que disse ao mocinho com quem “ficava” que o achava “com jeito de gay”. Depois, a menina lésbica flerta com a tal moça e o jovem rapazinho afeminado (que alma leve e livre esse menino tem!) entra em jogo romântico com uma bela loirinha, alguns anos mais velha que ele. Por último, descobre-se o ensaio fotográfico de um dos másculos participantes para uma revista gay.
Uau. Será que estávamos preparados pra isso? Parece que não. A cada um desses acontecimentos, seguiram-se lágrimas, mágoa e centenas de chacotas no mundo virtual. As “piadas” vão desde um grosseiro “esses gays sabem cozinhar, mas não sabem comer” (como se o vaticinador conhecesse de cor e salteado a alcova alheia) até um suposto “bigode” da moça homossexual. É tanto clichê, tanto lugar-comum, que chega a ser risível.
Que desperdício de oportunidade! Nesta edição do BBB, nos é dada a chance de entender algo que não é de hoje está plantando à frente de nossos narizes: somos todos seres humanos, passíveis de amar e desamar qualquer um a qualquer tempo. Além disso, e ao contrário do que muitos acreditam, essa variedade de gêneros, essa oscilação de desejos e vontades não é um exotismo. Gente comum também é assim! A necessidade de ostentar rótulos é o que leva as pessoas a se guardarem - e, principalmente, a guardarem os outros - em caixinhas estanques. Homens gays não podem sentir atração por mulheres; se isso acontece, ou estão “confusos” ou são garanhões em pele de cordeiro. Mulheres hetero que se aproximam romanticamente de gays o fazem atraídas pelo “desafio” de “torná-los homens” ou estão sendo “enganadas” por alguém que quer “brincar” com seus sentimentos. Homens heteros não podem dançar sensualmente; se isso acontece, é claro que são gays. Lésbicas não podem tentar seduzir não-lésbicas, pois isso seria uma “falta de respeito”. Homem que é homem não faz foto pra revista de viado. Meu Deus, que chatice!
Quando vejo tudo isso acontecendo num zum zum zum vicioso, sem que nada de bom brote e sirva de legado, sinto uma imensa frustração. Acho que já poderíamos ter passado deste ponto de inflexão há tempos. De qualquer forma, o fato da discussão estar na rua, up to date, me dá uma certa esperança de que, um dia, os diversos tons da sexualidade humana sejam vistos por nossa sociedade como nuances naturais de uma mesma cor. Façamos figas.
* A foto é do excelente filme La Confusion des Genres, dirigido por Ilan Duran Cohen, que vi no Festival do Rio há uns 10 anos. O tema, claro, é o mesmo deste post. Aprovo e indico!
6.3.10
Morrer de Amor
A doutora não conseguia entender muito bem o que acontecera. A história, a princípio óbvia, que a (im)paciente lhe contava, a partir de certo ponto passara a não fazer o menor sentido. Escabriada, pediu novos exames. O resultado mostrava que, pelo menos agora, a mocetona que se postava ansiosa à sua frente estava razoavelmente sã. Com o tratamento que lhe contara ter feito (inadequado!) e todo o sofrimento de cirurgias mal-sucedidas, dores e lágrimas que lhe narrara, nada casava com nada.
Rugas de dúvida pululando na testa, ela marcou nova consulta. Queria comparar os exames atuais com aqueles outros, os antigos, do tempo em que todo o mal sucedera. Chegou o dia e lá estavam os dois diagnósticos, totalmente incompatíveis: um, alguns anos mais velho, sofrido, dorido, vermelho e triste, e o outro, recente, pintadinho de fresco, leve, impetuoso e levianamente saudável.
Mais confusa ainda a mulher de branco ficou. Não receitou remédios (devido às circunstâncias, desnecessários eram), contudo pediu um moderníssimo e ultraespecífico diagnóstico sanguíneo para dali a três meses. Ele irá ser o inceticida para a pulga que teima em viver atrás de sua orelha: afinal, essa menina tem ou não tem a tal doença?
"Não tenho" - pensou a moça do outro lado da mesa. Vaidosa, teimara por anos em não admitir a verdade que ela - e só ela - conhecia. Agora que estava prestes a ser desmascarada, tudo parecia tão claro que sabia não ter mais o direito de se esconder atrás de laudos e sintomas. O mal que lhe acometera - ah, e como sofreu! - fora mesmo de amor. Naquela feita, ele fora em sua vida um daqueles males duros, crônicos, que consomem carne e espírito ao longos dos anos, até que não sobre quase nada além de um corpo esgazeado, fatigado de dor e tristeza. Dessa moléstia, por pouco não pereceu. Se seu sofrimento não devia ser motivo de vergonha, tampouco de orgulho, que servisse, ao menos, de lição.
(E creiam - serviu.)
7.2.10
O Homem Ordinário
Ele nem se dava conta. Quando refletia, tinha certeza de que era o Homem Extraordinário. Vá lá, não era especialmente belo, rico ou inteligente, mas tinha suas impermanências, suas voluntariedades, suas excentricidades. Não sou de permanecer numa mesma música, ou função, ou amor, por muito tempo, dizia. Como se isso fosse mais importante que toda a aventura de viver.
Ele não fazia idéia. E, na grande falácia que criara, foi vivendo, mudando, saltando de galho em galho. Numa dessas paragens, esbarrou na Mulher Extraordinária. Ela vinha bonita, interessante, charmosíssima e cheia de problemas. Sim, problemas: a Mulher Extraordinária e a Mulher Perfeita, embora muitos não saibam, são pessoas completamente distintas. Como não poderia deixar de ser, o Homem Extraordinário se encantou e quis aquela mulher para ele. Duvidando ser ele quem dizia ser, ela resistiu, contudo ele tanto fez que acabou por convencê-la.
Ele continuava sem saber; ela, aos poucos, ia começando a identificar as incongruências daquela história. Passada a vertigem de primeira hora que sempre causa a paixão, deu-se conta a Mulher Extraordinária de que vinha distribuindo sorrisos burocráticos em reuniões sociais, ouvindo piadas encardidas e atravessando finais de semana tediosos. Tendo absoluta certeza de quem era, só havia uma possível explicação para aquele descompasso: quem estava a seu lado, definitivamente, não era o Homem Extraordinário. Ato contínuo, deu as costas e sumiu. Surpreso, ele achou que quem ia embora era Mais Uma.
Ele segue sem perceber até hoje. Num novo esbarrão da vida, viu-se convicto de ter encontrado, finalmente, a Mulher Extraordinária. São medianamente felizes, na medida medíocre de sua corriqueira rotina, com doses controladas de sobressalto e contratempo. Talvez, ao encontrar a morte na velhice, ele perceba que, sendo por vocação o Homem Ordinário, encontrou aconchego nos braços da Mulher Ordinária. Mas o mais provável é que morra na ignorância.
28.1.10
De obsessão em obsessão
O título acima foi tomado de assalto de um texto que li num livro didático quando ainda era bem criança. Ele falava sobre a obsessão que ligava o narrador-personagem à palavra “obsessão”. Toda vez que ia escrevê-la, ele consultava o dicionário para conferir se estava empregando a grafia correta. Quando precisava usá-la assim, no seco, sem ter como confirmar (ah, aquelas trevas pré-internet...), simplesmente pirava. E, a partir daí, ele ia falando sobre pequenas outras obsessões suas. Eu devia ter uns sete ou oito anos, e adorei o texto a ponto de relê-lo um punhado de vezes. Identificação total.
E por que me lembrei disso? Porque hoje fui dar com os costados num consultório psiquiátrico, coisa que só acontecera uma única vez na minha vida: aquela esofagite erosiva pós-defesa-do-mestrado-durante-desemprego-e-pré-primeira-incursão-no-velho-mundo começava na cabeça e tinha que terminar por lá. Mas hoje a visita tinha outra razão, bem menos dolorosa. Precisava de um laudo de sanidade mental para fins meramente profissionais. Como não conhecia o médico, fiquei pensando em como seria... e posso dizer sem pestanejar que a realidade correspondeu aos mais estranhos delírios de contista - aqueles que vinha tendo na longa viagem de taxi entre o Maracanã e Copacabana.
O médico, figura bonachona e estrábica, começa a consulta atribuindo uma imensa importância àquele bendito atestado. Ok, não discordo, é importante mesmo, mas tanto a ponto de precisar ser complementado por um eletroencefalograma? Ta, ele é o médico e eu não sei de nada. Sou informada de que, se houver alteração no meu eletro, estou re-pro-va-da. Assimilo bem... é a vida. Depois, me pergunta quanto eu ganho. Respondo sem resistir: servidor público tem isonomia mesmo, meus rendimentos são um livro aberto. Ele diz que a pergunta faz parte do “teste”, e se eu questionasse a razão dele querer saber, demonstraria paranóia. Estaria re-pro-va-da.
Pausa dramática.
Neste momento, eu poderia escolher entre morrer de medo daquele homem ou achar toda a consulta meio boba, meio chata. Como há mais um monte de psiquiatras no livro do meu plano de saúde prontos a me considerarem uma pessoa “normal”, resolvi que seria só educada e honesta. Se ele me diagnosticasse como louca, buscaria uma segunda opinião.
E continuam as perguntas. Em algum momento eu cito o Itamaraty, ele fala em “viados” - segunda menção do gênero, após a androginia do Caetano Veloso, que “ficou melhor depois que virou homem”. Eu me sinto pessoalmente insultada e julgo muito, muito mesmo, essa chulice machista. Depois de um cerca-lourenço que me deixou tonta - “Pra psiquiatria ser homossexual não é problema, o problema é não lidar bem com a própria homossexualidade”, blábláblá - pergunta de supetão qual é a minha orientação sexual. Eu digo que sou heterossexual. Fico feliz pelo fato de sentir atração exclusivamente por homens; fosse eu gostar só ou também de mulheres e aquela lenga-lenga duraria mais uns 20 minutos.
Enveredando por caminhos que muito longe passavam do que imaginava de uma consulta como essa, chegamos ao fim. Nenhuma pergunta sobre eventos de transtorno psiquiátrico em minha vida, sintomas que possa ter tido ou medicamentos que tenha usado. No exame clínico, fui a-pro-va-da. O laudo final vem depois do eletro, no qual ainda posso ser re-pro-va-da.
Saí de lá com a palavra engodo soando nos tímpanos. Quanta tolice! Mal sabe ele que, embora eu tenha assentido com a cabeça à sua grosseria, achava um barato muito charmoso aquela fase andrógina do Caetano. Vivendo imerso na prepotência de quem não permite ao outro concluir frases, também não vai saber nunca que um sorriso polido pode esconder mil críticas. E, na obsessão por saber se sou paranóica, lésbica ou se consigo cumprir ordens, não conseguiu vislumbrar meu real defeitinho: a obsessão por beleza, simetria e perfeição. Nesse teste, ele não passou.
18.1.10
Daquele jeito
Olha, não é pra me gabar (até porque não ando ganhando medalha de Honra ao Mérito por isso), mas to pra ver alguém com a minha vocação pra driblar a vida. No último mês, virei quase um Robinho de cama e mesa. Um Garrincha de repartição. Um Ronaldinho Gaúcho das paixõezinhas-e-amores monumentais. Ah, viver cansa, às vezes.
Depois da última cacetada (hoje de manhã, par hasard), resolvi que tudo vai melhorar. E, do jeito que eu sou turrona, duvido que isso não aconteça. Quem viver, verá.
Depois da última cacetada (hoje de manhã, par hasard), resolvi que tudo vai melhorar. E, do jeito que eu sou turrona, duvido que isso não aconteça. Quem viver, verá.
11.1.10
Do desamor
Vinte e nove anos eu tenho, e há vinte e nove anos que me falam exaustivamente de amor. Amor, amor, amor - sempre ele. Amor de pai e mãe, de avô e avó, de primo, coleguinha, namorado, amigo. Amor de todo jeito, até dos (e pelos) bichinhos de estimação. A palavra amor parece ser a que deve reger a roda da vida, o sucesso profissional e pessoal, os humores, o morar, dormir, acordar, parir e viver. É uma overdose de amor, um coma alcoólico de amor.
Irônico nisso é que, bem sabemos (e desculpe se queimarei os castelos de algum desavisado), o amor tal como o conhecemos é mais uma bela invenção humana, construída, aperfeiçoada e adornada ao longo de séculos e séculos, principalmente no sentido estrito do amor romântico - esse sem-vergonha. Vivemos um sentimento que, a bem da verdade, ninguém sabe muito bem o que é. Afeto, carinho, paixão, compaixão... Tudo isso, ao fim e ao cabo, não é amor, em diferentes gradações e espécies? E não é essa diversidade de formas de apresentação que traz o “não-sei-quê que faz a confusão”?
Não que o amor seja uma criação perversa ou algo ruim: imagine! Se não fosse esse sentimento tão nobre e humano, teríamos feito muito pouco neste planetinha que nos foi legado. Agora, se há um sentimento outro, sobre o qual nunca ouço falar, embora o veja espalhado pelo mundo, é o desamor.
Ah, o desamor: palavra que traz uma carga imensa de lágrimas e ranho. Quando ela me vem à cabeça, a imagem que faço é daquela bolerosa mulher dos anos 50, vestida em tafetá de seda azul-rei, sozinha, sentada à bancada de um bar na elegantíssima Copacabana de antanho. Enquanto Dolores Duran canta lá no palco um samba-canção cheio desamor, aquela mulher, amargando uma tremenda dor de cotovelo, acende o vigésimo Gaulloises e pede ao barman mais uma dose de whisky - cowboy. Dolores, doce e cruel, entoa:
Toda amargura
Que há no céu
Que há na terra e no mar
Nasceu talvez da tristeza que tens no olhar
No céu há um sol a brilhar
Que beija a terra e o mar
Só tu continuas assim
Dia e noite, a chorar
Mas e o dia seguinte daquela noite etílica e fumarenta?
Primeira hipótese.
Ele não vai voltar; a despeito das crianças, do apartamento na Bolívar e das festas na pérgula do Copa, o desquite é inevitável. Ele foi seu primeiro namorado, o homem a quem seu pai a entregou, com pompa e circunstância, no altar do Mosteiro de São Bento. Ele era seu único e verdadeiro amor, e agora ela o via escapar por entre os dedos e cair nas mãos duma corista do Night and Day. Pois é: além de ganhar a medonha pecha de desquitada, ainda teria de suportar perder seu homem, de fato e direito, pra uma Certinha do Lalau. Como viver com isso?
Por uma ironia cruel
Alguém começou a cantar
O samba canção de Noel
Que viu nosso amor começar
Só falta agora
A porta se abrir
E ele ao lado de outra chegar
E por mim passar
Sem me olhar
E já era manhã quando, levando os scarpins na mão, deixou seus pés tocarem na areia úmida do Posto 4. Debruçado num janelão que se abria pro atlântico sul, o poeta (havia muitos, de verdade, naquele tempo) via aquela mulher que, lenta e firmemente, entrava no mar, submergindo sem susto, como se encharcar os pulmões de água até fenecer fosse a única coisa sábia a fazer.
Segunda hipótese.
Ele não vai mesmo voltar, e essa certeza dói demais. Ela ama aquele homem de tal forma, e há tanto tempo, que nem sequer se lembra de como era viver sem amá-lo. E será que é possível desamar? Há de ser: é isso ou a morte. Morrer duas vezes é pensar nos meninos criados por uma madrasta vedete de teatro de revista. Morrer três vezes é saber que mal completou 30 anos, que tem bons pulmões (apesar do cigarro), que é linda e cobiçada e que dará cabo da própria vida se não aprender o que é desamor.
Vamos sair por aí
Sem pensar no que foi
Que sonhei
Que chorei, que sofri
Pois a nossa manhã
Já me fez esquecer
Me dê a mão
Vamos sair pra ver o sol
Irônico nisso é que, bem sabemos (e desculpe se queimarei os castelos de algum desavisado), o amor tal como o conhecemos é mais uma bela invenção humana, construída, aperfeiçoada e adornada ao longo de séculos e séculos, principalmente no sentido estrito do amor romântico - esse sem-vergonha. Vivemos um sentimento que, a bem da verdade, ninguém sabe muito bem o que é. Afeto, carinho, paixão, compaixão... Tudo isso, ao fim e ao cabo, não é amor, em diferentes gradações e espécies? E não é essa diversidade de formas de apresentação que traz o “não-sei-quê que faz a confusão”?
Não que o amor seja uma criação perversa ou algo ruim: imagine! Se não fosse esse sentimento tão nobre e humano, teríamos feito muito pouco neste planetinha que nos foi legado. Agora, se há um sentimento outro, sobre o qual nunca ouço falar, embora o veja espalhado pelo mundo, é o desamor.
Ah, o desamor: palavra que traz uma carga imensa de lágrimas e ranho. Quando ela me vem à cabeça, a imagem que faço é daquela bolerosa mulher dos anos 50, vestida em tafetá de seda azul-rei, sozinha, sentada à bancada de um bar na elegantíssima Copacabana de antanho. Enquanto Dolores Duran canta lá no palco um samba-canção cheio desamor, aquela mulher, amargando uma tremenda dor de cotovelo, acende o vigésimo Gaulloises e pede ao barman mais uma dose de whisky - cowboy. Dolores, doce e cruel, entoa:
Toda amargura
Que há no céu
Que há na terra e no mar
Nasceu talvez da tristeza que tens no olhar
No céu há um sol a brilhar
Que beija a terra e o mar
Só tu continuas assim
Dia e noite, a chorar
Mas e o dia seguinte daquela noite etílica e fumarenta?
Primeira hipótese.
Ele não vai voltar; a despeito das crianças, do apartamento na Bolívar e das festas na pérgula do Copa, o desquite é inevitável. Ele foi seu primeiro namorado, o homem a quem seu pai a entregou, com pompa e circunstância, no altar do Mosteiro de São Bento. Ele era seu único e verdadeiro amor, e agora ela o via escapar por entre os dedos e cair nas mãos duma corista do Night and Day. Pois é: além de ganhar a medonha pecha de desquitada, ainda teria de suportar perder seu homem, de fato e direito, pra uma Certinha do Lalau. Como viver com isso?
Por uma ironia cruel
Alguém começou a cantar
O samba canção de Noel
Que viu nosso amor começar
Só falta agora
A porta se abrir
E ele ao lado de outra chegar
E por mim passar
Sem me olhar
E já era manhã quando, levando os scarpins na mão, deixou seus pés tocarem na areia úmida do Posto 4. Debruçado num janelão que se abria pro atlântico sul, o poeta (havia muitos, de verdade, naquele tempo) via aquela mulher que, lenta e firmemente, entrava no mar, submergindo sem susto, como se encharcar os pulmões de água até fenecer fosse a única coisa sábia a fazer.
Segunda hipótese.
Ele não vai mesmo voltar, e essa certeza dói demais. Ela ama aquele homem de tal forma, e há tanto tempo, que nem sequer se lembra de como era viver sem amá-lo. E será que é possível desamar? Há de ser: é isso ou a morte. Morrer duas vezes é pensar nos meninos criados por uma madrasta vedete de teatro de revista. Morrer três vezes é saber que mal completou 30 anos, que tem bons pulmões (apesar do cigarro), que é linda e cobiçada e que dará cabo da própria vida se não aprender o que é desamor.
Vamos sair por aí
Sem pensar no que foi
Que sonhei
Que chorei, que sofri
Pois a nossa manhã
Já me fez esquecer
Me dê a mão
Vamos sair pra ver o sol
Dobrando a esquina da Duvivier com a praia, ela viu a bruma morna sobre o mar amanhecido. Faria um dia quente, pensou. Caminhando pelo rasinho, molhando a barra do vestido, sorrindo e passando os dedos pelos loiros e anelados cabelos, chegou até seu apartamento. Hoje, levaria os filhos pra um mergulho. Depois, passaria na modista. Durante o almoço, planejaria o divórcio em Montevideo. E, antes de voltar pro jantar, compraria o disco daquele baiano moderno de que andavam falando. Já não fazia sentido algum ouvir samba-canção, se queria mesmo era viver em compasso de bossa nova.
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